segunda-feira, 14 de novembro de 2011

IV JANELA DE CINEMA - balanço

Liana Cirne Lins

Visto desde a janela crítica

Uma maratona de dez dias de cinema entrando por todos os sentidos e transbordando pelos poros a que se chega ao fim num misto de exaustão e êxtase.

A experiência de escrever as críticas dos curtas nacionais e internacionais que participaram da mostra competitiva e integrar um júri especial foi rica em vários sentidos e incrivelmente envolvente, a despeito do Janela Crítica ficar um tanto marginalizado dentro da estrutura do próprio festival e de uma relativa invisibilidade dos textos publicados que, de forma até simbólica, não integram o site do J
anela e não são anunciados na página do evento no facebook.

O festival teve tantos pontos altos que os problemas técnicos dos primeiros dias, principalmente com o som do Cinema São Luiz, ficaram esquecidos à medida em que o festival avançava.

Em primeiro lugar, o festival acordou o centro do Recife, tingiu as paredes do Edifício Trianon com suas projeções e forçou os ratos a abrirem espaço para as pessoas em frente ao Cinema São Luiz, que ressurgiu como um amante antigo que reaparece para lembrar nunca ter sido esquecido.

Além disso, o festival promoveu várias catarses coletivas, iniciando pela sua abertura com Febre do Rato de Claudio Assis e passando por todos os Kubricks. Com a resolução dos problemas técnicos do som, as intensas sensações sonora e visual vivenciadas permitem dizer que ali todos assistiram O Iluminado pela primeira vez.

Quanto aos curtas, chamou atenção o fato de vários deles (Vó Maria, Oma, Adeus Mandima, Elegie à Rimbeau) orbitarem a esfera íntima de seus realizadores, levando o espectador para dentro das suas casas, das suas famílias, das suas intimidades. Isso pode ser bom, pois o universal se estabelece a partir do íntimo.

Mas também se mostra uma armadilha, quando reflete a incapacidade de ver o outro e sentir a partir dele ou mesmo quando expõe uma limitação sensorial e perceptiva do diretor.

Exercícios adivinhatórios são sempre muito arriscados, mas ao final do IV Janela Internacional de Cinema do Recife fica-se com a impressão de que esse festival vai entrar para a história da cidade e compor o imaginário coletivo artístico e intelectual que compôs seu público nesses dez dias. Não especialmente pela boa seleção dos filmes ou pela movimentação cultural no centro da cidade ou pela alta qualidade técnica de som e imagem que pode ser principalmente vivenciada na retrospectiva Kubrick. Mas porque, juntando todos esses elementos num só evento, promoveu uma experiência intelectual, simbólica e afetiva como há muito tempo não se tinha em Recife.

sábado, 12 de novembro de 2011

EU RECEBERIA AS PIORES NOTÍCIAS DE SEUS LINDOS LÁBIOS

Beatriz Braga

Você tem medo da vida?

"Você só deve abrir quando estiver muito desesperado". Ela diz revelando o presente, uma caixinha preta e seu cadeado. "– E a chave?" Não tinha. Como previsto, o desespero chegou e a caixa quebrada serviu para acalmar (ou inquietar ainda mais?) o coração: "eu te amo" escrito em linha simples, quase esquecido e deixado para trás. A história pode até parecer clichê, se não fossem as personagens densas e complexas que compõem o epicentro da trama. Cauby, o artista, Ernani, o pastor, e Lavínia, uma mulher dividida entre a paixão ardente ou a aparente estabilidade da salvação religiosa. Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios, de Beto Brant e Renato Ciasca, foi exibido na quinta-feira (10-nov.) no Cinema São Luiz.

Lavínia (Camila Pitanga) de cabelos soltos, nua e pintada de tinta. Em um ritual amoroso com Cauby (Gustavo Machado), ela mostra sua face crua que serve perfeitamente à câmera do amante, as fotos mais bonitas do fotógrafo que guardam seu maior segredo e desejo. Mas Lavínia também é a mulher que veio das ruas, da prostituição e das drogas acolhida por Ernani (José Carlos Machado). Ele vê nela uma criança carente que o espectador dificilmente encontra. Em um ritual religioso, enquanto ela vomita, ele balança sua cabeça e pede a Deus que expulse a maldade de seu corpo. Lavínia também nunca deixou de ser a criança dolorida pelo abuso sexual. Em seu ritual com o vício, a bebida, aquela menina indecisa entre assumir seu corpo de mulher ou enfrentar a violência ao seu lado surge de repente. Lavínia não consegue decidir o que a faz sã. Erra muito por tentar acertar. Mas de muito procurar os extremos opostos de seus desejos, acaba caindo em devaneios. Todo mundo tem um pouco da Lavínia que prostitui sua identidade em troca de proteção e, também, da que se entrega de corpo e alma à vida, ao perigo.

Você tem medo da vida? Pergunta Vicktor, um quarto personagem de passagem pelo filme, mas nem por isso menos interessante. A interrogação alfineta o espectador que até agora só observava. Vicktor, que parece não temer a morte e vai ao seu encontro, mostra que difícil mesmo é permanecer vivo e encarar a realidade. Sua herança deixada para Cauby é categórica, uma espécie de jornal que trazia as fotos de Lavínia e a frase grande e pertinente “Santa é a carne que peca”. A pureza está no infame, no desequilíbrio. Santo é Cauby quando erotiza o ultimo rastro da igreja no corpo da mulher do pastor, é Ernani quando faz se entrega ao sexo carnal da protegida e, por fim, Lavínia quando bate à casa do fotógrafo e diz “eu voltei”.

Quando os caminhos se divergem, a força do sentimento parece ser maior. O amor é, no final, é a única fonte de lucidez. A morte de Ernani, a prisão de Cauby e tempo depois, o local de encontro é um Hospício. Ela é paciente, ele ainda apaixonado. Um sem o outro, estão perdidos. A identidade da mulher cheia de faces, idas e vindas é deixada para trás. A lembrança do que já foi está, agora, transformada em uma nova mulher. Não se vê resquício de Lavínia naquela que agora atende por Lúcia, seu, talvez, nome original. Por fim, ela simplesmente sorri, pela primeira vez no filme.

INTERNACIONAL 2 – QUATRO MULHERES

Bárbara Buril

Quatro modos de libertar-se e deixar-se libertar

Um senhor doente, na cama, tem uma fantasia: ter um encontro sexual com uma prostituta travesti. Imobilizado, quem faz o convite? A sua esposa. É constrangedor, mas Aliya, a prostituta, aceita o desafio. Fourplay: San Francisco (Kyle Henry, 2011) conta a emocionante história de um episódio que tinha tudo para marcar a vida de um homem heterossexual, mas que acaba sendo inesquecível para a própria prostituta.

Tom diz “sim” com duas piscadelas do olho e “não” com uma. Só sente a face e os pés. Apesar das limitações físicas, o homem consegue, com o dedão do pé, dar a Aliya o orgasmo nunca alcançado. A situação, apesar de cômica, consegue ser traduzida de uma forma impecável: a música é romântica, o quarto está à meia-luz e Tom olha para a mulher com toda a serenidade do mundo. Uma virgindade, ali, está sendo rompida.

Justine, a personagem do curta-metragem Junior (Julia Ducournau, 2011), também guarda um segredo. Assim como outras meninas do seu colégio, sofre de uma maldição metamórfica: dores no estômago, vômitos e fissuras na pele é o preço da transformação das meninas em mulheres. Junior, como é chamada no colégio, agora assume a identidade Justine.

A vazão ao orgasmo e à exploração do gênero é dada. Em Girl (Fijona Jonuzi, 2011), há a libertação de regras sociais. Hanna, de 32 anos, a convite de um desconhecido em uma loja de conveniências, vai parar em uma festa de apartamento com cinco jovens de 20 anos. Inicialmente, ela sente-se incomodada com a diferença de idade e eles mostram-se surpresos. Depois de bebidas e cocaína, esquecem o problema e aproveitam a noite.

Já quem assombra o cotidiano de Daphnèe, uma jovem adolescente haitiana, é o espírito de Marassa. Em lugares inadequados, ele toma o corpo da menina. Diferentemente do espaço urbano dos três curtas do programa Quatro Mulheres, o universo de Sève (Louise Botkay, 2011) se dá no contexto mágico das religiões africanas do Haiti. Assim como Aliya, Junior e Hanna, Daphnèe também precisa se libertar. É só esperar finados acabar, época em que os espíritos bêbados e brincalhões descem mais facilmente.

INTERNACIONAIS 3 – MELANCOLIA

Lorena Tabosa

Basta estar vivo

Tudo o que está vivo, morre. Esta talvez seja a maior das lições que jamais iremos aprender. Jamais porque por mais que haja o esforço, nunca se sabe, ao certo, como lidar com algo letal, implacável e pontual ao mesmo tempo. E não é necessário que se esteja diante da morte física, da morte de alguém. Pensamentos, desejos, sonhos e medos podem ser abatidos, dando vida à dor. No programa Internacionais 3, Melancolia, o espectador do Janela pôde se deparar com este delicado limiar existente entre o desespero, a culpa e a saudade.

Em Raio de Sol Bate no Setor de Congelados e Deixa Tudo Mole (Kommt Ein Sonnenstrahl in Die Tiefkuhlabteilung Und Weicht Alles Auf), de Lisa Weber, um casal leva uma rotina de calmaria, até um tanto apática. Não tomam café da manhã juntos e se prostram diante da televisão em poltronas separadas, num indício de indiferença. Mas uma cruz de madeira, fincada na beira de uma estrada, quebra a monotonia e dá lugar à dor em comum, a um abraço lado a lado. Numa representação simples e fiel, o filme nos transporta para os confins de uma grande perda e suas implicações em quem fica. É a sensação de um vazio impenetrável e, quase sempre, mas não neste caso, particular.

Dizem que o homem sofre de véspera. Em A Viagem (Wycieczka), de Bartosz Kruhlik, devaneios de um avô sobre o passar do tempo, sobre aquilo que já se foi e sobre o que não mais virá. Ele ensina sua neta a pilotar uma scooter e a apreciar a natureza, embora saiba que, provavelmente, não a verá pôr em prática outras tantas lições que ainda tinha para ela. O tempo passa despercebido até o momento em que pesa demais. Na inocência da menina, nota-se que as toneladas são sentidas apenas por quem já está aí há algumas décadas e que, infelizmente, ela só saberá quando do envelhecimento inevitável causado pela dor da perda. E é assim com todos nós.

Também comum à humanidade é a preocupação lançada em Adeus, Mandima (Kwa Heri Mandima), de Robert-Jan Lacombe: a despedida. No filme, fotografias de uma infância no Zaire e a partida da família, de origem européia, para nunca mais voltar. O lamento de Lacombe é a conhecida culpa pelo adeus nunca dito, embora, à época, ele não soubesse que jamais veria aquelas pessoas outra vez. E sem nunca ter pertencido a nenhum lugar, ele descartou e foi descartado em meio a disparidades culturais. Numa fresta para a questão das lembranças versus identidade, o espectador tem a oportunidade de projetar-se novamente e indagar: somos frutos daquilo que vivemos ou o que vivenciamos é resultado daquilo que somos?

Fotografias retornam na narrativa de A Esposa do Fotógrafo (Die Frau Des Fotografen), de Karsten Krause e Philip Widmann. Fazendo uso de fotografias diante da efemeridade do tempo e das falhas da memória, Gerti teve sua existência imortalizada pelo olhar do marido, em nus cobertos apenas de amor e de um quê de idolatria. O filme propõe uma reflexão sobre o que nos resta no fim de tudo. Serão fotografias? Será amor? Na verdade, um é bobina do outro e se um deixa de existir, o outro esmorece.

Mas quando são os desejos que morrem, ou são forçados a morrer, nem a dor e nem o choro são, necessariamente, menores. Em Dois, Por Favor (Dos, Por Favor), de Fabian Vasquez Euresti, um reencontro mal sucedido com uma namorada permite que José se veja em desejo por um amigo. O choro de medo daquilo que não conhecia sobre si mesmo e a tentativa de calar a vontade se contorcem numa luta entre o homem passional e o racional. Mas para eliminar um desejo, outro - o de matá-lo – precisa nascer. Assim, a morte é, na verdade, vida, mesmo que dolorosa demais.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

EU RECEBERIA AS PIORES NOTÍCIAS DOS SEUS LINDOS LÁBIOS

Liana Cirne Lins

Nem tudo, nem nada

Uma boa história de amor é uma história de perdição e de redenção.

Ao mesmo tempo, porque amor é perdição e redenção, é doença e cura, delírio e lucidez, entrega e recato, pulsão de morte e de vida.

Porque o que queremos é morrer nos braços do outro e renascer.

O problema é quando esse tudo parte-se ao meio, como o visconde de Calvino, e se apresenta em duas metades tão apartadas quanto um pastor líder comunitário e um fotógrafo hedonista.

Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios (Beto Brant; Renato Ciasca, 2011) é um história de amor vivida por Lavínia, interpretada por Camila Pitanga, ex-prostituta e ex-drogada, libertada pelo pastor com quem viria a casar, Ernani (Zé Carlos Machado).

Sua vulgaridade e sua fragilidade remontam a cena de Betty Blue (Jean-Jacques Beineix, 1986) em que ela, levantando o vestido e usando nada por baixo, exibe e projeta seu sexo em sinal de desacato e transgressão.

À beira da autodestruição, o resgate religioso da mulher se dá numa cena de exorcismo realizada livre de qualquer preconceito, numa oração recitada com muita convicção por Zé Carlo Machado, que confere a Ernani a duplicidade da pureza e do interesse na bela mulher.

Em missão religiosa, mudam-se para o Pará e casam-se. A vida de Lavínia se transforma e ela encontra paz na tranquilidade da felicidade doméstica e nos hinos religiosos que entoa nos cultos. Lavínia curou-se.

O problema é que tanta cura e saúde adoecem.

Ninguém consegue interpretar um só papel.

Lavínia encontra em Cauby (Gustavo Machado) a cura para sua sanidade.

Com ele, reencontra sua outra metade: ela mesma, sua própria riqueza delirante, frenética e alucinada.

Desde o início, a cumplicidade dos dois é a destruição: penetram-se com cores e tintas e pinceis e marcam um no outro símbolos de morte e de guerra. Seu destino está anunciado.

E se Lavínia não pode resistir à insensatez que Cauby representa, também não quer abandonar a sanidade do leito de Ernani. A consciência da impossibilidade de completude, a incapacidade de decidir, a dor de novamente ser metade de si mesma levam-na à loucura, cujo realismo aumenta na mesma proporção em que Camila Pitanga despoja-se da sua beleza.

Seria um filme feminino, não fosse o ponto de vista prevalente de Cauby. E nesse sentido ele é tão masculino que à nudez desinibida de Camila Pitanga contrapõem-se calculados enquadramentos que vedam ao espectador o recíproco nu masculino.

O filme perde-se em alguns momentos com cenas excessivas, como a cena de abertura em que uma mulher posa para câmera, a de um ritual xamã, e um micro-documentário sobre as consequências da devastação da floresta para as comunidades locais, que nada incorporam à narrativa.

No último caso – a denúncia sobre o corte ilegal da madeira – sua incorporação na ficção (como ficção) funciona bem. Uma sequência de imagens aéreas da floresta que vai sendo progressivamente desmatada entrelaça os dramas políticos da comunidade com os dramas pessoais dos personagens que vão, assim como a floresta, sendo devastados.

Beto Brant e Renato Ciasca optam por um final feliz, tão em desuso.

Inflam novamente a vida em Lavínia, com um beijo, como num conto de fadas do século XXI.

Lavínia não pode ter tudo, mas não é condenada a ficar esvaziada.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

BRASIL 5 - EU SINTO FALTA

Liana Cirne Lins

Esse é um programa que anuncia uma tonalidade triste. Mas sentir falta pode ser um aquecer o coração, um sopro cálido e sereno.

No caso de Elégie à Rimbaud (2011, Leo Pyrata), temos um divertido curta feito a partir de imagens de arquivo de um cachorro, Rimbaud, brincando com seu dono e diretor do filme. Os latidos do cão são acompanhados de legendas em francês dos versos do poeta Rimbaud supostamente recitados pelo cachorro, o que inevitavelmente arranca boas risadas da platéia. O mais engraçado, entretanto, é a narração também em francês que descreve as desventuras amorosas e sexuais de Rimbaud, desfiando uma longa lista de cadelas por quem se apaixonou e disputou amores pelas ruas. A elegia de Leo Pyrata é um filme terno, leve, de um humor inteligente e acessível.

De outro lado, assumidamente nostálgico fica o Quando Morremos à Noite(Eduardo Morotó, 2011). Inspirado no conto A Mais Linda Mulher da Cidade, de Bucowski, o filme não apenas em preto e branco, mas sombrio, tem como protagonistas um homem de meia idade e uma jovem que se conhecem em um bar. No filme, porém, o elemento destrutivo não está na mulher (como no conto), que se mostra sempre vívida, mas no homem, que está doente. A ligação que se vai construindo entre os dois, fundada numa intimidade despretensiosa, é rompida pela decisão do homem de partir, estabelecendo uma primeira falta, transitória. A inversão das personagens e do impulso autodestrutivo poderia falsear o final e torná-lo inconsistente. Não é o que ocorre. O final surpreende. O sentimento da falta é mais agudo quando é inesperado.

Pra Eu Dormir Tranquilo (Juliana Rojas, 2011) conta a história de um menino de oito anos que está sofrendo muitas perdas ao mesmo tempo: a perda de atenção da mãe na iminência de ter outro filho, a perda da infância, pois está crescendo e, especialmente, a perda da babá, que morreu recentemente. A forma da diretora lidar com essa falta foi a mistura de gêneros com que uma história sobre afeto é contada através de elementos fantásticos (a babá ressurge no armário do menino), de terror (a babá assume forma de vampira, zumbi...). Ainda assim, a babá não causa medo, e sim a mãe, sofrendo de uma depressão pós-parto e tensa com problemas de trabalho de que não pode se afastar.

Vó Maria (Tomás Von der Osten, 2011) é uma tentativa de resgatar a memória da tataravó do diretor. Trata-se de uma tentativa não porque o diretor falha, mas justamente porque é bem-sucedido em seu projeto. O filme é uma sequência de imagens de uma única foto da personagem título que vão de um close extremo até um distanciamento que desfoca a imagem na tela, enquanto ouvem-se os depoimentos da neta, bisneta e tataraneta, que também vão se distanciando progressivamente da personagem até à afirmação “eu não sei nada sobre ela”. Esse não é um filme sobre a falta. Ao contrário, é um filme sobre o quanto nossa presença vai desaparecendo sem deixar faltas e sobre o quão finitos somos.

É interessante pontuar Vó Maria com Oma (Michael Wahrmann, 2011), filme que compôs o programa Puxando e Soltando. Se no primeiro temos um filme que busca em vão aproximar-se do seu passado, no segundo temos o registro do distanciamento entre gerações. Oma é um filme desrespeitoso em vários aspectos: na ridicularização da senilidade da personagem, nos planos invasivos que acentuam ou expõem uma decrepitude na velhice, nas situações de estranhamento da comunicação entre aquelas gerações acentuado pela insistência da avó em falar sua língua materna, alemão, que o neto não compreende e pela insistência do neto em não compreendê-la. O filme é um retrato da dificuldade em lidar com o outro que nos é diferente.

Estranhamento e esquecimento também são temas de A Felicidade dos Peixes (Arthur Lins, 2011). O cotidiano de um homem solitário que recebe a notícia da visita da filha distante há 20 anos, visita que acaba sendo frustrada, é o mote do estranhamento do protagonista com seu entorno e da uma falta imprecisa em sua vida. O ritmo lento do filme, os planos de destaque dados à televisão, as refeições delivery são coerentes com a proposta narrativa. O filme, porém, é significativamente prejudicado pela atuação de Humberto Lopes no papel do protagonista, chegando a levantar no espectador a dúvida sobre se houve a opção por utilizar um não-ator e distanciado o espectador do personagem, quebrando o tom intimista do filme.

INTERNACIONAL 2 – QUATRO MULHERES

José Juva

Quatro leituras do feminino e outras milhões embutidas


Focando a vida de algumas mulheres podemos ter as metáforas para compreendermos o universo de milhares, milhões de outras mulheres. E é esta a força das histórias das protagonistas do programa INTERNACIONAL 2 – QUATRO MULHERES, da IV Janela Internacional de Cinema. Uma jovem adolescente em sua jornada de iniciação e encontro com os espíritos do vodu haitiano, outra garota às voltas com os estranhamentos e as transformações provocadas pelo turbilhão de hormônios da adolescência, uma mulher adulta deslocada numa festa com cinco garotos em seus vinte e bem poucos anos e, finalmente, uma mulher criada na força de se travestir, atendendo os desejos sexuais de um sujeito moribundo.

Ousado, simultaneamente perturbador e delicado. Este é Fourplay: San Francisco, de Kyle Henry. Somos lançados num recorte do trabalho de uma drag, atendendo sexualmente no ambiente doméstico um sujeito em estado vegetativo, auxiliado por máquinas – ele se comunica pelo piscar de olhos. Depois de conversar com a esposa do sujeito, a drag vai para o quarto, onde o homem vive, sobre a cama. Sodomia, felação, podolatria – cabe tudo na entrega sincera da drag para animar e confortar o sujeito, que fica sempre com um ar de riso no rosto. No sexo distante do cotidiano e da ortodoxia, o homem reencontra as possibilidades para assegurar que permanece jorrando vida. “Você é uma máquina de sexo, baby. Está vivo.”, diz a drag.

Calcado numa estética experimental, num registro documental sutil, Sève, de Louise Botkay, acompanha o despertar do relacionamento de uma jovem haitiana com o mundo mítico e espiritual. Banho de ervas, danças, incensos. A garota recebe em sonhos o espírito de Marassa – este espírito representa o andrógino primordial, sendo apresentado também nas figuras do casal de gêmeos Mawu e Lissa. Temas como a fertilidade, a doçura, a bravura e a força giram diante dos olhos do espectador, amparados na vivência de iniciação da jovem. Frágil e pouco eficaz, Girl, de Fijona Jonuzi, conta a história de uma mulher adulta deslocada numa festa com cinco garotos por volta dos vinte anos. O filme amortece o espectador, também deslocado neste sobrevôo superficial sobre os silêncios constrangedores que envolvem as gerações.

Junior, curta realizado por Julia Ducournau é um experimento maduro. Atrai o espectador com uma narrativa permeada de assombros, lirismo, desconforto – como numa cena em que a garota revira profundamente a pele das costas. A jovem protagonista é insegura em relação ao corpo e às transformações típicas da idade – algo similar à estrutura da fábula do patinho feio. Embora o tema seja demasiadamente conhecido, o curta constrói uma assinatura própria ao traçar no corpo da jovem e no ambiente que a cerca, se utilizando de fortes materializações visuais das metáforas, as mudanças e transtornos por que passa. A garota fica bonita, quase irreconhecível, mas tem de aprender a lidar com gosmas que saem de seu corpo e encharcam o quarto. Para o espectador e para a personagem, a certeza de que é preciso voltar-se sobre si e encarar as próprias inseguranças para encontrar a sabedoria de uma vida autêntica.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

BRASILEIROS 3 – SALVAR ARQUIVO VOL.3

Lorena Tabosa

Memórias, suas e minhas

Se fosse para encarar ao pé da letra o título do programa Brasileiros 3, Salvar Arquivo Vol.3, já seria plausível adotar o pensamento de que se trata de curtas-metragens, de certo modo, documentais. E são. Mas são também mais que isso. São personificações impressas na tela de algumas de nossas próprias memórias, expressas através de memórias alheias.

Em Roberto Cabeção, de Salomão Santana, uma viagem às intimidades de uma família que poderia ser a sua. A impressão que dá é que todos aqueles dias de gravações em fita cassete voltaram como um flashback, tanto para quem era criança no início dos anos 1990 (época que se passa o filme), quanto para quem empunhava a câmera e eternizava a infância dos filhos, sobrinhos, irmãos. A proximidade que se cria com as imagens caseiras é inevitável e a saudade, dos tempos que não voltam mais, se torna latente.

A sensação de identificação acontece também com os primogênitos, escondidos no meio de qualquer plateia, em O Pai Daquele Menino, de Raul Arthuso. Um adolescente, depois de fazer mil conjecturas sobre um suposto caso amoroso da mãe, recebe a notícia de que vai ganhar um irmão e acaba naquela já sabida confusão sentimental: fico feliz ou não? É um retrato, mesmo que menos incisivo do que poderia ser, das relações entre pais, filhos e o elo familiar de modo geral.

E como lidar com o depoimento de alguém cujo companheirismo é um misto de belo e inquietante? Essa é uma questão que permanece suspensa após a experiência de adentrar a vida do casal colecionador de fósseis de Ovos de Dinossauro na Sala de Estar, de Rafael Urban, também diretor de Bolpebra, exibido neste Janela. A viúva, que fez cursos de Photoshop para manter acesos os sonhos e coleções do marido, dá uma aula de como pode ser o “até depois de a morte nos separar”. Apesar de um tanto monocórdia, a obra acaba por nos infectar com o amor sem barreiras de que tanto ouvimos falar, mas duvidamos que existisse.

Já em Calma Monga, Calma, de Petrônio de Lorenna, não são as lembranças de uma família, de sua família ou de um casal de desconhecidos que “fazem a cabeça” do espectador, mas sim o imaginário popular, indiscutivelmente a maior das memórias. Tradicional em Pernambuco, a história da Monga, a mulher-gorila, atravessa gerações e deixa pairar no ar a sua veracidade, trazendo de volta a relação do humano com o mítico, que resulta em desproteção e desamparo. É nesse limiar de ficção e realidade que o filme brinca também com outros símbolos populares, como os programas policiais e os cines pornô, divertindo seus olhos. E nisso de ser representação do medo e do desejo, a Monga está solta e todo cuidado é pouco.

BRASILEIROS 3 - SALVAR ARQUIVO

Domitila Radharane

Raimundo dos queijos, Victor Furtado; CE, 2011. O bloco de curtas “BRASIL 3” inicia-se com o curta Raimundo dos Queijos. Obra instigante e sensual. Entre olhares, cristalinos, um homem branco com olhos verdes, vestindo roupas leves e chinelos, e um caderno de anotações vermelho, música e movimento que mais parecia dança. Segue o destino à uma mesa do bar “Raimundo dos queijos”, situado na Travessa do Crato/Ceará. O personagem e seu diário de capa vermelha, harmonizado ao portão vermelho atrás da mesa escolhida. Dentre uns goles de cerveja, degusta queijo coalho e cita o seu dia: ”Domingo, centro, Raimundo dos queijos”. Qual o eu lírico deslumbra beleza de compor a escrita como prosa poética. Paralelo à isso, um grupo de deficientes visuais em performance musical, vibrando de entusiasmo o público de ontem(08/11/2011), no cinema da Fundaj. Dentre canções, o trecho “a fogueira tá queimando, em homenagem à São João[..]”. Entre sorrisos e vibrações de alegria, o filme parece se comunicar com o público. E os signos aparecem em variedade. Um momento familiar repleto de vida, fogo energético condutor dos observadores apreciadores da arte ambulante e viva que é o ser humano.

Ovos de dinossauro na sala de estar (Dinosaur Eggs in the Living Room) Rafael Urban; PR, 2011. Dentre variados tipos de linguagem e cenários, Ovos de dinossauro na sala de estar, a partilha da sublime e memorável vida em suas particularidades. Uma senhora loira vestida de vermelho, uma meia-calça, um lustre de cristal e piano são elementos que suscitam o gosto sofisticado da personagem, logo da idealização da obra. Um retrato às criações, boas lembranças e virtuoso amor com o falecido esposo. Através de narrações da história de sua vida, fotos que se fazem eternas no inconsciente. E citações de um antigo convite de jantar em sua residência-museu-laboratório artístico. Entre preciosos objetos e coleções, a lucidez de continuar a vida vigorosamente ativa. Bela película que ativou ao sentimento da pureza de compartir e re-significar através de lentes transformadoras, qualquer processo estático do ser humano de impossibilidade de avanço. O tempo pareceu lento demais em algumas cenas, uma espécie de sentimento vazio sem significado. E então, esse pode ser o foco da crítica em sentido de relativizá-lo.

Roberto Cabeção (Big Headed) Salomão Santana; CE,2011. No mesmo bloco, Roberto Cabeção, nos lembra o amor através de desenhos, interações de imagens simples de uma rotina no interior do Ceará, e muito afeto. Inicia-se com um desenho de um homem nu com uma grande cabeça verde que reflete grama, e uma declaração-homenagem: “meu tio Roberto tinha uma cabeça enorme[...]”. Algo situado na expectativa de sentir-se diante do infinito, do inusitado acaso, que pulsa os círculos sociais em sua chegada. E corrompe o medo de protestar todo o necessário, situado no movimento das evoluções. Com tantos elementos familiares, uma rádio em “flashes” com técnicas expontâneas a destencionar, e fazer o natural fluir do personagem presente na cena , e todo o público. Meios e formas de educação são expostas através de um olhar neutro e revelador. Ao mesmo tempo, exposição de crianças à linguagens que divergem o nível da boa educação, refletindo aos alicerces básicos, melhoras na conduta ética e moral da sociedade brasileira. Por vezes, um sentimento de ingenuidade pelas explorações em níveis tão profundos como presentes no dia- a- dia de um cidadão carente de qualidade de vida. Em outras visualizações, o fio profundo do coração que liga, transmuta e renova, refrescando a sensação da evolução de cada dia, sendo realizada por imaginários limpos, brilhantes e prósperos.

BRASIL 6 – PUXANDO E SOLTANDO

Bárbara Buril

O destino (ou a maldição) dos laços

Eu queria que você ficasse aqui. Diz a avó para o seu neto. O curta-metragem OMA (Michael Wahrmann, 2011), exibido ontem (9/11) no programa Puxando e Soltando, mostra o universo da senhora Gerda, frágil, mas bonito. O neto (o próprio cineasta), ao conversar com a avó através das câmeras, capta dizeres tocantes sobre incompreensão, apego, tempo e visão. O espectador pode quase chorar. Em preto e branco, o filme entra em consonância com o universo da senhora, escurecido pela pouca capacidade dos olhos. Tudo é cinza, diz.

Também é emocionante o curta Zenaide (Mariana Porto, 2011). Mais próximo do videoarte, o filme mostra fotografias envelhecidas de mulheres que se casaram em 1960. As batidas de coração compõem o som, juntamente com os depoimentos das atuais senhoras. Apesar de terem resumido as suas vidas ao casamento, uma delas diz gostar da música Moon River, do filme "Bonequinha de Luxo", e canta: There is such a lot of world to see...¹ Talvez não agora. Quem sabe, depois...

Ainda dentro da questão dos laços familiares, está o Uma Primavera (Gabriela Amaral Almeida, 2011). Uma mãe leva a filha para comemorar o aniversário de 13 anos em um parque. A garota está crescida, já faz as pernas, troca mensagens com o namorado e diz não gostar da cor do bolo: rosa. O programa, idealizado pela mãe, já não cabe mais. Um passarinho morto, ao lado da toalha de piquenique, guarda a metáfora da liberdade. Com equilíbrio, a fotografia limpa de Matheus Rocha capta uma manhã no parque.

Já os dois curtas Céu, Inferno e Outras Partes do Corpo (Rodrigo John, 2011) e Na Sua Companhia (Marcelo Caetano, 2011) tratam dos laços puxados e soltos dos amores perdidos e conquistados, respectivamente. O primeiro, um divertidíssimo desenho animado, mostra o fim de um relacionamento de uma forma cômica, para não dizer trágica. Um mar de sangue inunda a casa do personagem, um cachorro humanoide. Para parar de sofrer, o homem (?) congela o próprio cérebro e vomita o coração.

O amor conquistado – finalmente! – está no filme de Marcelo Caetano. Pornoamador, o personagem do filme usa a câmera de seu celular para registrar homens nus com os quais se relacionava. Depois de conhecer um homem na noite gay de São Paulo, o conteúdo de suas imagens passou a mudar: além do nu, retratos do cotidiano dos dois. O curta fecha o programa Puxando e Soltando com a música Maldição, de Maria Bethânia. Afinal, que destino ou maldição manda em nós, meu coração... ?

¹ Tradução: Tem tanto no mundo para ver... Canção de 1961, composta por Johnny Mercer e Henry Mancini.

INTERNACIONAIS 4 - O CINEMA REMIXADO

Domitila Radharane

Sobre
The Voice Of God, Bernd Lutzeler; India, 2011

Estar no mundo e não pertencer ao mundo. O que esta película, salientadora do movimento/velocidade/espaço, ao refletir simultaneidade entre personagens, paisagens e poesia, nos concebe. Ao mesmo tempo, tratando dos universos simbólicos, como fruto de cruzamentos entre imaginação e imaginário, as extremidades de ritmos ultra-velozes quais regem às cid...ades. Entre maioria e minoria, expressas em contrastes, ora pelo movimento metropolitano dos carros, das máquinas, da sociedade como um todo; ora por uma mulher de vestido vermelho e “sári”(traje típico indiano) azul, sentada em uma cama, dentro de um quarto.

Dentre elementos mais variados, principalmente a calma silenciosa dessa personagem, uma espécie de meditação em uma postura de contraste à toda realidade adversa à sua vibração. Sofás com lírios estampados, televisão e acessórios. A todo instante, um homem narrador que através das citações na língua indiana, revela-nos a cultura e núcleo espiritual da mesma. O regente de todo o filme, a voz que é som, e o som que torna-se possível o sentimento repleto de completude existencial. Multidões dentre rituais sagrados indianos, todos repletos de tintas coloridas, aparecem juntos à beira de um rio.

Uma espécie de mantra “hindu” que acalma a frenética atmosfera das regiões industriais. O tempo interior difere-se do exterior. O que nos move torna-se contraste diante das frenéticas zonas de controle. Delicada miragem qual traça um paralelo entre ideias e conceitos de mundo novos e antigos que sempre se renovam. É assim que o já antigo “novo mundo” americano se mistura ao “velho mundo” ibérico e, no caso do Brasil, segue se renovando com influência de diferentes universos. Diferentes formas de ver e apreender uma cultura, em ligação com a ideia íntegra ao “eu” e ao “tu”.

BRASIL 6 - PUXANDO E SOLTANDO

José Juva

Aqui, além.

Puxar e soltar os fios do novelo da memória, puxar e soltar os corpos em movimento ao nosso redor, puxar e soltar as palavras e as imagens para dar conta das loucuras e dores do amor e do desamor, das incompreensões em diálogo. O programa de curtas-metragens BRASIL 6 – PUXANDO E SOLTANDO, da IV Janela Internacional de Cinema de Recife, agarra olhares transeuntes e libera as mentes dos espectadores para vagarem por um sonho coletivo numa tentativa de tatearem e descobrirem intimamente o que o desejo e o afeto conseguem trazer para perto de nós e o que queremos, permitimos ou aceitamos que a vida arraste para longe.

A diretora Mariana Porto, em Zenaide, costura o depoimento de sete mulheres a respeito das relações de poder e afeto, discutindo o casamento como uma estratégia de sobrevivência. Zenaide, um dos curtas-metragens do projeto Olhares Sobre Lilith (adaptações de várias realizadoras sobre o livro de poemas As Filhas de Lilith, de Cida Pedrosa), desdobra a narrativa do poema: uma mulher se casa aos vinte anos, em 1964, como quem compra uma bicicleta. Entrelaçando as declarações das entrevistadas, também casadas por volta dos vinte anos, Mariana Porto constrói a imagem de uma mulher questionadora das convenções sociais – como a obrigação do casamento e da procriação. Já no curta-metragem Oma, de Michael Wahrmann, as relações entre o realizador e sua avó, personagem-título, servem como fio condutor para a narrativa. O filme é calcado numa estética precária, operando a linguagem de um vídeo doméstico, gravado em visitas do diretor à sua avó. O sujeito fala espanhol, a avó fala alemão. Ela não escuta, ele não entende. O curta-metragem caminha por uma navalha tênue, entre o registro da história íntima da família e o uso descabido e despropositado da avó como um personagem, até certo ponto, caricato. A perspectiva adotada elabora um plano de embotamento do sujeito, onde transparece uma estratégia não partilhada, uma hierarquia entre quem detém o controle da narrativa (o realizador) e quem está à deriva (a avó, Oma).

Uma Primavera, de Gabriela Amaral Almeida, repisa o tema das interações entre mãe e filha, destacando o instante em que a prole se afasta da larga área de influência materna. Uma história em linha reta: aniversário de treze anos da filha, num piquenique, nenhum amigo por perto, nem o pai. A mãe dorme e quando acorda a filha não está por perto. Algum espectador com dislexia pode embarcar no suspense. Mas o jogo previsível já havia sido estabelecido. E, quando a mãe fica procurando a filha pelo parque, já sabemos que ela está ficando com um garoto. E é o que a mãe avista. Na Sua Companhia, de Marcelo Caetano, é uma ficção sobre o universo jovem homossexual, a partir do olhar de um professor da rede pública que gosta de filmar seus parceiros. Espraiado numa estética da pornografia amadora, o curta-metragem lança um olhar sobre os fetiches, as idas e vindas do amor e do sexo. A animação Céu, Inferno e Outras Partes do Corpo completa o programa, com a história de um cão abandonado por sua amada cadela. O personagem entra, então, numa viagem metafórica e literal do despedaçamento de si: fatiar o coração, bater o cérebro no liquidificador, passar a ferro o rosto, perder os dentes, embalado por Loucura, de Lupicínio Rodrigues.

CINEMA REMIXADO - INTERNACIONAL 4

Liana Cirne Lins

Experimentalismo, pesquisa e conceitualidade

O programa Cinema Remixado escolheu cinco curta-metragens que tem em comum a reapropriação de cenas, imagens ou falas de outros filmes. Também deve ser destacada a irrelevância do conteúdo das falas no produto final, o que é acentuado pela opção dos diretores de três deles – Stardust, The Voice of God e Joule – de não utilizar legendas para sua tradução.

Do programa, destaca-se Conferência (Conference, de Norbert Pfaffenbichler, Austria, 2011), que é uma montagem de cenas com diversos atores interpretando Hitler em distintas situações (sério, preocupado, discursando, afeminado, sorrindo), cujos discursos e diálogos são substituídos por ruídos e distorções que se harmonizam com a intensidade e o tom provavelmente usados pela voz do ator, confirmando que uma imagem a que se confere um forte significado prescinde de justificações para formar um sentido para o espectador.

Exceção feita à Conferência, os demais mostram-se como experimentações fílmicas que rompem com a narrativa cinematográfica tradicional, mas que ao mesmo tempo não apresentam nada de novo, já que a montagem de cenas ou falas de filmes existentes para criar um filme feito a partir de outros filmes já foi realizada diversas outras vezes, inclusive com muito maior sucesso e foi inclusive ludicamente referida em Rebobine Por Favor (Be Kind Rewind, Michel Gondry, 2007).

I’m Not The Enemy (Alemanha, 2010, Bjørn Melhus) alterna quatro personagens, todos vividos pelo diretor, que representam a família de um veterano de guerra, cujas falas que se repetem são retiradas de filmes sobre o Vietnam e realocadas para um cenário do subúrbio da Alemanha. A alternância da trilha sonora que vaga entre o jocoso e o tenso é um dos pontos altos do filme que se propõe a questionar as dificuldades da reinserção de um veterano de guerra (que pode ser a representação de todas as nações que tomaram parte nela), mas que não necessariamente alcança a finalidade a que se propôs.

Stardust (Bélgica, 2010, Nicolas Provost), assim como I’m Not The Enemy, brinca com o realocamento de falas. Aqui são reaproveitados filmes policiais que comporão o ambiente de Las Vegas, em que pacatas famílias de turistas são incorporadas a situações de tensão advindas daqueles filmes. A proposta inicialmente divertida converte-se em maçante em sua execução, o que é agravado pela completa ausência de legendas para um filme que seria carregado justamente pela transposição dos diálogos. É como se fôssemos forçados a assistir a brincadeira sem que pudéssemos brincar. Mas dessa vez o mimado dono do jogo tem uma câmera ao invés de uma bola.

The Voice of God (India, 2011, Bernd Lützeler) é uma mixagem de imagens da India feita a partir de documentários e outros filmes. O locutor indiano narra algo incompreensível e o tom de voz do narrador é a aspirada voz de Deus. A disparidade entre a pretensão artística do filme e o seu resultado é gritante, especialmente porque a voz do locutor não tem nada de especial em relação a qualquer outro locutor de programa de rádio religioso ou mesmo programa de auto-ajuda romântica para solitários nas madrugadas.

Finalmente, o programa encerra com Joule (Itália, 2010, David Zamagni e Nadia Ranocchi), um pot-pourri de cenas onde são dispersos energia e trabalho de que o joule é uma medida. Durante 22 minutos, somos arrastados por cenas em que borboletas batem asas, uma chave é derretida, crianças dançam, um casal de homens dança, uma stripper dança, um homem desprende enorme esforço físico (para erguer pesos de 10 kg), uma mulher entrevista um homem (ou o oposto, não é possível saber já que mais uma vez não foram utilizadas legendas em português, embora haja legendas em inglês...). O filme encerra com o mesmo homem se exercitando, agora de costas, mostrando a bunda para o espectador. Muito simbólico.

Ao final do programa, fica-se com a impressão de que a inovação almejada não decorre do intento de romper com o tradicional, mas simplesmente da incapacidade de realizar o tradicional, de dedicar à obra a pesquisa, o trabalho conceitual e técnico que ela mereceria para oferecer ao espectador uma experiência cinematográfica verdadeiramente inovadora.

INTERNACIONAIS 4 - O CINEMA REMIXADO

Beatriz Braga

Em tempos de correria, a arte pode ser flagrante. As câmeras captam o passar do tempo, a perda da espontaneidade. O cinema em remix, repetindo o que todo mundo vê sempre mas não reflete, tem um propósito. Para reproduzir o ciclo vicioso da modernidade, da rotina e de um passado ainda presente, o cinema fala, repete e repete de novo. As cenas dos curtas de sessão Cinema Remixado ficaram como um mantra na cabeça dos telespectadores. A receita, porém, corre o risco de parecer um disco emperrado e não agradar. A ordem é prestar atenção nas imagens, esquecer as falas, diálogos e afins. O que importa está no movimento e na sucessão problemática dos acontecimentos.

O homem musculoso que malha incansavelmente, as crianças que brincam no aparelho eletrônico, um motorista de tanque de guerra que dorme ao volante e o casal gay que disputa uma competição de dança. O curta Joule (David Zamagni e Nadia Ranocchi, Itália) apresenta a mecanicidade da rotina. O hábito ganha a indiferença de uma stripper apática. A vida fica essencialmente pornográfica como a dançarina de corpo dançante e sensual, mas de olhos estáticos, cansados, prostituídos. Partindo para o macro, o filme The Voice of God (Bernd Lutzeler, India) fala também da rotina. Mas agora sobre o dia a dia de Mumbai, narrado por uma voz forte, com uma pretensão divina, sem legendas para o português. As cenas mostram pássaros presos entre cercos de concreto, carros em movimentos, rastros de pessoas deixados nas ruas. Uma mulher indiana aparece, reclusa e triste em seu quarto, entre os flashes tumultuados. Uma representação da figura feminina, esquecida entre o crescimento econômico da cidade.

">“Você é um homem bom" tenta, incansavelmente, se fazer crível a mãe de um ex-soldado. I´m Not the Enemy (Bjorn Melhus, Alemanha) é uma reflexão cômica sobre a insuficiência de um país e da própria família em lidar com o pós-guerra. O rapaz, depressivo, deitado no sofá, divaga sobre o que é vida e morte, enquanto seus pais parecem querer disfarçar suas próprias dores e repetem clichês. O Rádio, à sua moda antiga, aparece constantemente nas cenas e simbolicamente traz a presença histórica e o peso do país em uma casa de família comum. A criança feliz que um dia foi o homem, marcado agora pela guerra, está morta e tudo está acabado.

Conference (Nobert Paffenbichler, Austria) traz também a guerra, agora numa retrospectiva de vários atores interpretando Hitler em preto e branco. Mudam os rostos e cenários, continuam as expressões ásperas. Entre dizeres inteligíveis, a brutalidade incomoda o telespectador. A Alemanha da década de 1940 está volta e é impossível entender a popularidade e a submissão de um povo por aquele som remixado da ditadura.

O sexto filme da sessão, Stardust (Nicolas Provost, Bélgica), é uma trama que ganha vida na noite de Las Vegas. Uma câmera escondida e um suspense entre as casas de jogos da cidade. A edição perturbadora do filme, os diálogos praticamente incompreensíveis e o roteiro cansativo chegam a causar, em alguns momentos, desconforto no telespectador.

BRASIL 1 - GRITOS PRIMAIS

Beatriz Braga

O apelo primata da modernidade

Quanto mais o mundo avança, mais é preciso resgatar o passado para entender os homens de hoje. Os filmes da sessão Gritos Primais lembram que a modernidade não conseguiu resolver problemas primitivos da existência humana. O primeiro, Da Origem, de Fábio Baldo, apresenta um homem primata, perdido, solitário e a sua ode e proteção a uma pedra que lhe daria o fogo. Essa personagem pouco tem da valentia nata que os homens da caverna costumam ostentar nos filmes. O medo é seu guia. Recluso e triste, ele observa a tribo que interage entre si. Com uma cabeça de caveira na mão, parece não entender bem o que a morte significa. Emocionado, sente a chuva forte limpar sua pele suja e dolorida da mata seca. O ser moderno se projeta naquele homem que não sabe viver em sociedade.

O segunda curta, Avalons, de Carlos Eduardo Nogueira, é um convite a uma viagem. Se o telespectador aceita a ideia, se diverte à custa de fórmulas técnicas bem resolvidas. Em forma de desenho e tomada por uma trilha envolvente, o filme faz uma sátira de fábulas tradicionais, a começar pela disputa de dois cavaleiros por uma dama. Em meio a uma espécie de Calígula moderna e infantil, a tela se enche de estórias paralelas, soldados, máscaras de ferro e crianças. Quem assiste pode até não entender nada, mas permanece curioso e atento até o fim.

“Eu não sei o que aconteceu com a gente” diz ele para a mulher atônita e frígida a sua frente. O casal que surge no terceiro curta da sessão, Porcelana, de Thiago Alves, representa tantos outros pelo mundo. Aqueles que sentam ao restaurante e não conversam, convivem e não se olham e tentam maquiar, assim como o homem do filme, uma relação perdida. A mulher revela, depois, uma corrente que prende seu pé. Seminua, tenta se libertar e foge do homem que, de tanto querê-la, prefere matá-la a vê-la livre. Todos os elementos primitivos do filme estão presentes na modernidade, nas amarras invisíveis que mulheres e homens se submetem.

No penúltimo filme, índios curtindo rock, bebendo e se matando. Traindo Iracema e o naturalismo idealizado no Brasil, Sérgio José de Andrade apresenta Cachoeira, um curta documental sobre o alcoolismo suicida na mata. “Canuerê, me ajuda!” suplica à cachoeira grandiosa, o homem de lábios carnudos, cabelos negros e pele marrom. A beberagem é um problema social de uma tribo do Amazonas e é exibida nesse curta orgânico, de fotografia exemplar. A natureza, que para os homens da capital geralmente surge em um contexto de salvação, aqui é o começo e o fim de várias vidas.

Dona Sônia pediu uma arma emprestada para seu vizinho Alcides, de Gabriel Martins, fechou a sequência. A violência levou o filho de Dona Sônia e o de tantas outras donas brasileiras. O homem que abre o filme fala diretamente com o espectador, que passa a esperar, também, por uma reação da mulher contra o mal que lhe foi feito. Ele toma a liberdade de tatear o rosto amorfo da senhora para encontrar alguma sobra de alma por trás dos olhos inertes. “Eu sei onde ele está, Dona Sônia”. O espectador entende. Dona Sônia quer cantar para Jesus e sentir algum efeito, porque, sem vingança, é difícil ter paz. O filme é uma crítica à impunidade e um ombro amigo ao sofrimento das mães saudosas do Brasil

terça-feira, 8 de novembro de 2011

BRASIL 2 – O MEU ESPAÇO

Bárbara Buril

Invasão e abandono: o movimento nos espaços

Maria Francisca decidiu não renunciar ao seu espaço. Fincou raízes ainda mais fortes no pequeno terreno de meio hectare, em São Lourenço da Mata, quando o Grupo Petribu expulsou 15 mil famílias para a construção de um complexo alcooleiro. O drama, iniciado nos anos 1990, continua desconhecido pela maior parte da sociedade. Ocupa as páginas dos cadernos de cultura do Estado, quando é divulgado o curta-metragem Acercadacana (Felipe Peres Calheiros, 2010), exibido ontem (7) no programa Brasil 2 - O Meu Espaço, no IV Janela Internacional de Cinema do Recife.

Premiado como melhor filme e melhor montagem no 43º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro em 2010, o curta denuncia, com imagens fortes, os efeitos negativos da expansão dos latifúndios canavieiros. As cenas da casa à noite, sem luz elétrica, chocam. Apesar de viver ao lado de um dos maiores empreendimentos energéticos do Estado, dona Maria Francisca vive sem luz. Proibições do Grupo Petribu. O diretor Felipe Peres consegue penetrar no universo da mulher com a delicadeza de um Eduardo Coutinho. Não invade.

Também conquistou o público o bem-humorado Os Sapos (Clara Linhart, 2011). O espaço do casal Marcelo e Luciana é desequilibrado pela visita de Paula, uma antiga colega de infância de Marcelo. Em uma pequena casa no interior, o casal vive sob a presença indesejada de sapos. Elo entre os dois, o animal desaparece enquanto Paula está presente. As paqueras deslavadas do homem levaram a plateia às risadas. Após a ida de Paula, voltam a coaxar os sapos do cotidiano.

Igualmente cômico é o curta-metragem O Hóspede (Anacã Agra e Ramon Porto Mota, 2011), uma ficção científica no Cariri. Um extraterrestre com corpo humano hospeda-se em uma pousada do interior da Paraíba com o objetivo de disseminar, naqueles arredores, uma doença que cega. Com uma qualidade cinematográfica indiscutível, o filme consegue criar humor a partir do teor freak das situações.

Sobre a invasão dos espaços, também é o curta A Janela (Ou Vesúvio) (Leonardo Amaral e João Toledo, 2010). Agora, é a televisão a grande defloradora das intimidades do lar. Um avô e um neto assistem e escutam narrativas de telejornais, que não só noticiam violências sociais, como as incitam. Na rua, ouvem-se tiros e muito barulho. Embaixo da cama, o símbolo do medo materializa-se em uma arma.

Enquanto Acercadana, A Janela, Os Sapos e O Hóspede tratam da invasão de espaços por seres e coisas estranhas, Monja (Breno Baptista, 2011) constroi o movimento inverso do abandono. O silêncio de uma casa, a lenta passagem do tempo, uma cama de casal ocupada pelo corpo solitário de uma mulher e uma camiseta masculina amarrada remetem ao fim de um relacionamento. A personagem, em Monja, já não grita pelo “meu espaço”. Conforma-se com ele.

BRASIL 2 – O MEU ESPAÇO

José Juva

Espaço, E s p a ç o, E s p a ç o, E s p a ç o


Você, leitor, tem conhecimento sobre qual é o seu espaço? O programa de curtas-metragens BRASIL 2 – O MEU ESPAÇO, da IV Janela Internacional de Cinema de Recife, mostra realizadores que desdobram, cavam ao redor, constroem e conquistam um espaço próprio. Filmes diferentes em seus anseios e gêneros, com variadas preocupações e soluções estéticas para refletir a respeito da noção de espaço, as películas compartilham a atenção às urgências do conhecimento de si e sobre o lugar do sujeito no mundo e também os limites e os atritos deste sujeito com os outros e com o ambiente ao redor.

Acercadacana, de Felipe Peres Calheiros, é um filme certeiro. Com fôlego curto, mas intenso, faz um recorte da história de luta de Maria Francisca pelo reconhecimento de posse de seu sítio contra as ameaças do Grupo Petribu, forte grupo econômico do setor canavieiro. Dona Maria é um personagem denso, e o filme consegue captar a todo instante sua alma afirmando e reafirmando seu direito legítimo ao espaço, a permanência de seu vínculo com o sítio de sua família. Em Monja, dirigido por Breno Baptista, acompanhamos a história de uma mulher solitária numa cama de casal. Em seu apartamento, ora se esparrama no chão, enquanto tenta ligar um ventilador quebrado, ora se abandona vagarosamente na banheira. A solidão ecoa, é espessa, e não arrefece nem mesmo quando a mulher encontra um parceiro para um sexo casual. Ela volta a estar só numa cama de casal, enquanto o sujeito dorme num colchonete no chão.

Com o curta-metragem A Janela (Ou Vesúvio), de Leonardo Amaral e João Toledo, a questão do espaço procura a identificação de uma fronteira entre o cotidiano e a realidade midiática. A televisão orienta a percepção do mundo. Ao olharem por uma janela da casa, um jovem e um senhor escutam a guerra. E o quarto se transforma num acampamento provisório para os feridos por essa crueldade diária. Em O Hóspede, da dupla Anacã Agra e Ramon Porto Mora, uma ficção científica simultaneamente bem-humorada e apreensiva, a visita de um alienígena a uma pensão do interior da Paraíba instaura o conflito, amplamente costurado no suspense e na curiosidade diante do desconhecido, sobre os espaços reservados ao anfitrião e ao visitante. Com bela fotografia e uma trilha acertada, o filme dialoga inteligentemente com as convenções do gênero, criando um trabalho com voz própria.

A problemática espacial recebe um tom intimista e divertido em Os Sapos, de Clara Linhart. A película nos põe em contato com um casal, sem compromisso formal (sabemos depois), em uma casa no sítio, perto de cachoeiras e de sapos. Por um pedido do sujeito, outra mulher, uma antiga amiga de conversas esporádicas na internet, aparece na casa – o que provoca fissuras no frágil relacionamento entre a “capitã” e o “sargento”, como o casal se nomeia. Para o espectador, rindo com as voltas na história, parece ecoar a todo instante a idéia de que não há espaço para os três.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

BRASILEIROS 4 – FILMADOS EM LOCAÇÃO

Lorena Tabosa

O céu, o mar e o meio do nada

Um menino negro de olhos azuis, um azul-celeste. Só isso já seria um toque de sutileza e realidade (não retratada comumente) suficiente para conquistar seus olhos, independente de que cor sejam, para o que viria a acontecer em Dia Estrelado, stop motion de Nara Normande, exibido ontem (6-nov) no programa de curtas brasileiros Filmados em Locação. Retrato da preservação da vida e luta pela sobrevivência no sertão, o filme mostra que nem sempre são necessárias demonstrações agressivas de chão seco para tocar o espectador.

Como é rotina em regiões áridas, a procura por água começa cedo do dia. E dessa busca depende todo o resto. Mas mesmo no mais inóspito dos lugares, a vida dá um jeito de acontecer, com uma flor que seja. Uma flor sertaneja. Uma flor roxa, alimentada de lágrimas e amor, quando a água falta. E com o coração é assim, a miscelânea de sentimentos é alimento, alento, fundo e raso ao mesmo tempo. Mas, como o curta-metragem deixa claro, se o raso prevalece, geralmente em horas como a da fome, a cegueira toma de conta e perdemos um pouco da humanidade.

A verdade é que até mesmo quando a vida está empacotada em caixas, dá-se um jeito de alimentar o “sentir” e encontrar o céu, que não precisa ser os olhos azuis de alguém. É isso que se vê em Com a Vista para o Céu, de Allan Ribeiro. Um casal de vizinhos, desconhecidos e solitários em seus respectivos apartamentos, pega o "Trem das Onze" de Adoniran Barbosa e ensaia um dueto, de uma janela para a outra. E nesse vai e vem de notas, a solidão se dissipa por instantes e diz que só vai voltar no próximo encontro no elevador, porque, por hora, a canção é afago e é céu.

Isolamento urbano também é mote para Praça Walt Disney, de Renata Pinheiro e Sergio Oliveira. O espaço, situado no bairro de Boa Viagem, é um carrossel sem cavalos, com carros dançando, quase em deboche, ao redor. A questão levantada pela obra é atual e de extrema relevância: afinal, são crianças ou cachorrinhos de madames que necessitam de playground? E a praia, por sua vez, na qual se está sujeito a ataques de tubarão, se rende e passa a abrigar piscinas montáveis de água salgada. Nem praça nem praia são mais sinônimos de socialização, um triste retrato das relações humanas contemporâneas.

Ainda em termos de isolamento, a sensação de primeiro contato assalta o espectador em Bolpebra, de Guilherme Marinho, João Castelo Branco e Rafael Urban. Uma cidade sem edifícios, com cerca de 40 habitantes e uma praça, na fronteira da Bolívia, Peru e Brasil. É alheio a quem vive em grandes cidades o conceito de pequenês na felicidade, com o qual acabamos defrontes nesta obra. Já em Contagem, de Gabriel Martins e Maurílio Martins, a alegria parece presa à possibilidade de escapar daquele lugar. Sob a ótica de quatro personagens diferentes, o momento da fuga é perdido e o avião, símbolo incontestavelmente apropriado, levanta vôo sem ninguém.

BRASIL 4 - FILMADOS EM LOCAÇÃO

Pethrus Tibúrcio

Diante da verticalização claustrofóbica que o espaço urbano sofre, a concentração populacional é maior e a isolação também. Com Vista para o Céu (Allan Ribeiro, 2011) é submerso em ruídos do amanhecer ao fim do dia, assim como são as cidades. Entre uma barreira de tijolos e janelas, duas pessoas entram em contato e quebram a solidão pelos versos de Adoniran Barbosa. O filme pega uma situação bem humorada, e que nos é comum, para trazer-nos à consciência da necessidade inerente ao ser humano de interação social.

Se no primeiro filme tudo o que podíamos ver eram filetes azuis e brancos entre os prédios, em Dia Estrelado (Nara Normande, 2011) os olhos do espectador são puxados diretamente para o céu. As cores quentes que constroem uma releitura de Van Gogh e localiza-nos, com uma pincelada poética, na narrativa, mostra-nos a região inóspita em que os personagens se encontram. Nara Normande cria, em seu próprio espaço, uma metáfora forte e verdadeira aliada a uma estética irrepreensível.

Em Adormecidos (2011), Clarissa Campolina dá aos modelos publicitários uma cidade que é só deles. O curta é construído em cima de luzes e anúncios que nos são conhecidos. Inicialmente, a cidade é vista de longe, aparentemente vazia e sem grandes movimentos. Quando a câmera se aproxima, o movimento dos faróis, que servem como termômetro e sempre em azul, os personagens imóveis estampados em cartazes ganham expressão nas ruas paralisadas.

Na divisa entre a Bolívia, o Peru e o Brasil encontra-se Bolpebra, que dá título ao curta de Guilherme Marinho, João Castelo Branco e Rafael Urban (2011). O filme mostra-nos qual a relação dos poucos habitantes desta região boliviana com seu território e como se dá o sentimento de pertencimento a uma nação em situações como esta. A câmera percorre o rio dando-nos uma situação geográfica do local até o ponto exato de encontro entre os países.

Com cinegrafia intimista, Contagem (Gabriel Martins e Maurílio Martins, 2010) quebra a narrativa linear e volta quatro vezes para determinada hora do dia sob a ótica de quatro personagens. Em cada um dos momentos, um dos moradores de Contagem é centralizado diante das câmeras e os outros permanecem fora do enquadramento. Um momento mostra resquícios de olhares anteriores que, se não nos fossem conhecidos, passariam despercebidos e nos faz pensar como somos inconscientes do que acontece ao nosso lado e que sempre nos afeta. O curta desvenda como se dão e desenvolvem as relações interpessoais em pessoas que possuem apenas duas coisas em comum: o lugar onde vivem e o desejo de saírem de lá.

Em Praça Walt Disney (2011), Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira observam e regem uma orquestra diária que toca na zona sul do Recife. Os apitos dos portões dão início e fechamento a uma sinfonia complexa que narra o convívio e distanciamento dos moradores, trabalhadores e transeuntes da Praça Walt Disney. O filme perde um pouco do foco narrativo para as imagens capturadas, mas que ainda são dignas de serem assistidas. Apesar de fazer um lembrete, um tanto vago, das influências externas sofridas pelo país, é na bossa brasileira que os cachorros, lixeiros, putas, turistas e moradores ganham ritmo.

O GAROTO DA BICICLETA

Beatriz Braga

Uma criança solitária e uma incessante busca pelo amor. O filme O Garoto da Bicicleta (Le Gamin au Vélo), exibido ontem, domingo (6), lotou o Cinema da Fundação Joaquim Nabuco no terceiro dia do festival. A obra dos irmãos Jean Pierre e Luc Dardenne (O silêncio de Lorna, Rosetta, A criança) conta o drama de um garoto abandonado pelo pai, a recusa do primeiro em aceitar a rejeição e a do segundo em acolher o amor do filho. Eis que a cabeleireira Samantha surge para devolver a bicicleta perdida da criança, um velho presente do pai, e acaba restaurando o vazio da vida do menino. O objeto era a última ligação de pai e filho e acaba se transformando no vértice de uma nova família.

O amor está disponível para aqueles que estão preparados para recebê-lo. Os laços convencionais e familiares perdem a primazia em detrimento à força de vontade e os corações abertos. As cenas de cores fortes conduzem a torcida do telespectador para que o mundo aceite o suplício de uma criança hostilizada pelo meio em que foi criado. O menino dos irmãos Dardenne é uma dubiedade criada pelo universo vil que habita. Ele leva a persistência, bondade e inocência de uma criança com a seriedade de um adulto amargurado. As ruas estão prenhas de maldade: violência, raiva, tráfico, abuso infantil. Para todos os efeitos, a arma mais eficaz é o amor puro e consequente. A criança que ora roubou sem intenção de lucro ou benefício, por fim, aprende o que é certo sob os braços dedicados da pessoa que o aceitou.

O longa foi lançado este ano e levou a estatueta do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes. A dupla belga primou na escolha do elenco, a atuação excelente e madura do jovem protagonista, Thomas Doret, entrou em completa sintonia com a atriz belga Cécile de France. O filme é, enfim, um conto sobre uma história de amor que brota da decepção. As pessoas crescem em torno de crença e desejos envolvidos por algum pacto social. No entanto, a vida se mostra mais frutífera quando se entende que se está procurando satisfação nos lugares errados.

INTERNACIONAIS 4 - O CINEMA REMIXADO

Domitila R. Menezes de Miranda

Sobre
"Conference", de Norbert Pfaffenbichler (Áustria)

A obra “conference” ativa reflexões tão objetivas quanto sensíveis à sincronicidade. A simultaneidade de um estado psíquico com um ou vários acontecimentos que aparecem como paralelos significativos. Dentre possíveis paralelos, o presente imaginário, o novo homem imerso à transformações de caracteres simbólicos do inconsciente coletivo, toda as eras da História guardadas em memória. Em sintonia com o êxtase criativo das faculdades mentais latentes ao ser humano. A fonte inesgotável de criatividade sob qualquer falha tirana, que deprima, deturpe-o da plenitude de seu perfeito organismo. Imagem e semelhança do Creador Universal.

Em meio à conversas aparentemente sem sentido na película, incoesões sonoras, timbres graves e distonias entre os principais líderes do nazismo, uma espécie de documentário e re-significância do mesmo. Isso é, por um lado, os acontecimentos da História-problema e a ciência do Homem no presente tempo. Os diálogos da arte, a mais antiga das ciências, por muitos pensadores, não considerada. Em preto e branco, um convite à luminosidade da potência de um pensamento reformulador de qualquer atmosfera nostálgica de sofrimento. Por vezes, a lembrança do músico-compositor Hermeto Pascoal, gênio da sensibilidade e captação sonora. Qual tudo vê possibilidade de arte musical, no que diz respeito à Criação de alto timbre vibracional sinestésico, via os sentidos do coração.

Equilibrando o pensamento da causa, o amor incestuoso, dos vários atos tirânicos do passado, a lembrança à Idade Barroca, imergida do ser mais profundo e belo, em ligação com um dos maiores gênios da história da arte, Charlie Chapplin. Misturas que somente hoje, agora, em plena efervescência vital contemporânea, libertariamente, vivemos. Incrível a unidade com todos o expectadores presentes, que pareciam estar sentindo o mesmo em diversidades particulares.

A sessão do programa "O cinema remixado", domingo no Cinema da Fundação, contou com um público jovem. Dois casais adolescentes em particular, na faixa dos 14 a 18 anos, assistia a sessão misturando risadas, carinhos, beijinhos com barulhinhos suaves embalando a experiência da projeção. União transcendental que nos leva a sentir os sinais de Deus presente em tudo qual permite a efervescência da vida e suas borbulhas do amor , intensas e além das palavras. Compreensão tão individual como repleta de responsabilidade à arquitetura de novas demandas sistemáticas sociais, tão subjetivas quanto objetivas. A luz da razão, que pela pureza, magicamente modifica. Desejo vivo e inocente de continuar. É como ver beleza no aparente vácuo existencial, ou paradigmaticamente feio.

Sobre
I´m not the enemy (Bjorn Melhus; Alemanha, 2010)

Como o próprio título afirma, "I´m not the enemy", sugere um dos significantes do filme anterior "Conference". As múltiplas possibilidades de visão de aparentes doenças psíquicas ou transtornos mentais, dentro dos estudos da "psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais" , pelo autor Paulo Dalgalarrondo. Com o alicerce da criatividade artística, o cenário harmonioso e hilário do filme. Um dos personagens com uma linda camisa florida, um piano, branca neve, árvores verdejantes mesmo em um clima frio. Tudo muito surreal. Em meio à diálogos existencialistas, três personagens: o filho, a mãe e o pai. Em partes, todos se misturavam dentre um só personagem. Um transcendente convite à reformulação de timbres sonoros expressados no roteiro, incluindo instrumentos agressivos, como armas.Novas "pegadas" musicais, em uma versão de apreensão e domínio do fluido movimento, ligados à ativação dos humores divertidos . Evoluindo, então, os processos psicológicos.

Na sala de cinema, belas risadas surgiram na platéia, em um ritmo contagiante, nos fazendo perceber diversos tons acentuadores da alegria viva em cada ser, além das misérias. Uma viajem ao auto conhecimento questionador, através de nosso interior, em integração com tudo o redor. Sempre em busca da perfeita batida, em diferentes significados do que seja a perfeição. Como um tambor ativando o som do coração, a permanência de um "eu" vivo em eternidade, e para além das identificações insanas ou sãs. Enfim, bela película que faz pulsar à disciplina das reformulações dos conflitos sociais, e atenuar a má educação qual deturpa e destrói a plenitude da beleza. A dança diária que nos move à altas vibrações sinestésicas, que une vida e morte, transmutando do senso comum, todo o sofrimento.

Sobre
Stardust, Nicolas Provost; Bélgica, 2010

Um carro branco e um prata, uma rodovia, uma parque de diversões são elementos que geram partida à obra. Dentre os cassinos de Las Vegas, prostituição, máfias das mais variadas, comunicações e símbolos lúdicos quais permitem a possibilidade de repensar esses tópico que, na verdade, são bastante "tocados" no mundo inteiro.

Las vegas, símbolo de consideração pela abundância dos mais variados entorpecimentos, refletida por uma ótica em "Stardust", direta e variada. Tragetória que ao longo das "pistas", podem parecer inexperadas ou paradoxais, contornando a atenção ao que transporta o pensamento às possibilidades da invisível consciência que perpassa qualquer realidade material. Dentre homens gordos em máquinas de jogos, celulares, um clima denso, uma realidade que ao mesmo tempo, é vida.

Tudo parece ser renascimento, crescimento, florescimento e recomposição. Os exageros quais repelem as sagradas vibrações da consciência de reformular e desarmar o homem-objeto de suas próprias prisões tão subjetivas quanto objetivas. Impressionante idealização que torna-se instrumento representante de observações e mudanças à restruturações sistemáticas. Ao mesmo tempo, belas paisagens da arquitetura da cidade. Urbanismo repleto de luzes coloridas que são reveladoras de sentidos múltiplos de um mesmo olhar. Desse modo, a qualquer hora do dia, ou do tempo, espíritos engenhosos, predispostos à realização de novos feitos. Estão jogando o jogo de hoje, que é discernir os caminhos de amanhã, que permitem a uma dada sociedade cumprir sua missão e ganhar seu sustento.

A velocidade do tempo situada na obra, em seu profundo sentido de transformação, desmancha os "nevoeiros" colossais pondo a nu o princípio, cujo sentido, não aparente, captado a partir da singularidade do expectador. Com neutralidade aguçada e traços criativos, o diretor se mostrou a todo instante, em contraste com a realidade objetiva de Las Vegas. Aos olhos atentos, é possível encontrá-lo em símbolos mais variados, com exemplo, a última cena: uma mulher vestindo camisa preta e calça jeans branca. Um homem que inexperadamente, retira sutilmente algo da camisa da mesma mulher de branco. O que mais parece um ato de cuidado com o outro, um ato de amor. A criatividade espontânea de significado que surpreendentemente faz mágica.

domingo, 6 de novembro de 2011

INTERNACIONAL 5 - CAMUFLAGEM

Pethrus Tibúrcio

O curta que abre o programa nasce no momento em que a arte começa a questionar os limites da própria arte. Incêndio (Fire, de Karen Akerman e Miguel Seabra, 2011) trata da perfeição inalcançável, de vingança, superação e da própria morte. Carregando uma bela direção de arte e unindo o poema de Goethe à melodia de Schubert, o curta lembra ao espectador que, ainda que não sintamos sua aproximação, o destino é sempre a morte, representada pelo Erlkönig. A câmera é quase sempre estática, a quarta parede é derrubada e as atuações são robóticas, o que dá ao curta um suspense que se torna cansativo.

Martha Medeiros já dizia que “a surpresa é um susto, uma taquicardia, uma cilada” e é da forma mais bem humorada que Urso (Bear, Nash Edgerton, 2011), passa isso para o cinema. Jack é o tipo de pessoa conhecida por não ter limites e que acaba se surpreendendo com as conseqüências. Surpreendente, no mínimo, o filme é.

Duas mulheres discutem preferências sexuais, visões políticas e experiências com dominação e sadomasoquismo (DSM). O curta começa tratando das estruturas de poder pessoais, do reino do superego e da abdicação do controle. Mas o fio de TSE (Out, Rooe Rosen, 2010) fica perdido quando entram na questão do exorcismo e uma das personagens, que se declara de extrema direita, afirma viver com Lieberman dentro do seu corpo e se presta a uma tentativa de exorcismo em que, esporadicamente, citações do político israelense são externadas.

O primeiro filme exibido na IV Janela Internacional de Cinema do Recife, Las Palmas (Johannes Nyholm, Suécia, 2011) não deixou a desejar em nenhum aspecto. O curta consegue ser nostálgico e, ao mesmo tempo, completamente inovador. Com marionetes, tecidos e um bebê que não chega aos dois anos de idade, cenário e narrativa se constroem. No cômico paradoxo que existe entre personagem e atriz e apesar do aspecto lúdico que conduz o filme, o turismo de Las Palmas talvez não pudesse melhor representado.

INTERNACIONAL 5 - CAMUFLAGEM

Lorena Tabosa

E as surpresas só começaram

Camuflagem, ou melhor, o famoso “parece, mas não é”. Essa é a premissa do programa Internacional 5, que abriu as mostras competitivas do IV Janela Internacional de Cinema do Recife ontem (5/11), na Fundação Joaquim Nabuco. Dos quatro curtas-metragens exibidos, não há um em que o espectador não seja tomado de assalto por uma guinada absolutamente inesperada na história. E, seguindo o momento de reviravoltas, o último desta vez será o primeiro.

De longe, o favorito do público foi Las Palmas (2011), de Johannes Nyholm, que já havia sido exibido na abertura do Janela. O básico: uma turista, muito “senhora de si, obrigada”, está curtindo sua viagem a uma praia paradisíaca. Agora, o extraordinário: quem vive a senhora de meia idade é um bebê, de aproximadamente um ano de idade. E apesar de a camuflagem acabar nas primeiras cenas, a graça não abandona o espectador e fica até o fim.

A ideia parece ser problematizar o quão bobo o indivíduo pode ser quando se confronta com situações de inúmeras possibilidades, sensação comum quando se está em outro hábitat. É uma metáfora para os excessos, pois à senhora não interessa poupar nada, nem ninguém, que se posicione entre ela e a diversão. E nesse contexto de falta e abundância, é possível perceber a chegada de certa vergonha, pela falta desta mesma e por ainda sermos todos crianças em muitas de nossas atitudes, num misto de saudosismo e realidade.

Incêndio (Fire, 2011), de Karem Akerman e Miguel Seabra Lopes, por sua vez, não traz uma menina/senhora como elo libertador de falsas verdades, mas dá ao fogo esse papel. Através dele, um cantor de música erudita é incitado a atingir a excelência na arte e a falar sobre, com e pela morte. Um poema de Goethe musicado por Schubert, Erlkönig, exige o máximo daqueles que se propõem a enfrentá-lo, justamente como a morte, que é perita em tirar vantagem das falhas e fracassos do homem.

Mas quando se aprende a lidar, um pouco que seja, com a morte, ela pode se tornar cômica e, quiçá, patética. Urso (Bear, 2011), de Nash Edgerton, é provavelmente a obra que mais brinca com nossa percepção neste programa. Marido e mulher, como é de praxe, têm suas rixas e brigas, muitas vezes causadas pelo esquecimento de um ou do outro. Era aniversário dela e ele só fingiu esquecer. Mas não importa, porque as consequências são graves de qualquer jeito e, de um simples desentendimento, pode nascer um bicho enorme e peludo. E mesmo que cheio de boas intenções, acaba sendo alvo de caçadores desavisados de que ali ainda existe amor.

E quanto àqueles que caçam seus próprios “bichos”? No israelense Fora (TSE, 2010), de Rooe Rosen, depoimentos de duas mulheres. Uma delas é assumidamente lésbica. A outra, se rotula como submissa. O comum entre elas é uma relação amorosa, certo? A bem da verdade, tal dúvida persiste até mesmo após a reviravolta no roteiro, pois o filme trata de uma temática inusitada: o sado-masoquismo. E sem saber ao certo se é documento ou ficção, findamos entre chicotes, palmatórias e a surpresa.

INTERNACIONAL 1 - SINFONIAS INDUSTRIAIS DE CINEMA

josé juva

Eppur si muove


Movimento, ato de mover ou de se mover. Entre outras coisas, os filmes do programa Internacional 1 – Sinfonias Industriais de Cinema, da IV Janela Internacional de Cinema do Recife, compartilham alguns sentidos possíveis evocados pelo vocábulo movimento. Os deslocamentos de um homem, flanando pela urbe e se misturando às máquinas de um parque de diversões; as crianças se espalhando pelas ruas da cidade, criando jogos e rituais; uma família se preparando para realizar uma noite inesquecível com uma discoteca móvel; uma jovem perambulando através dos sonhos e dos metrôs; um suave deslizar pelos espaços de uma construção em ruínas, englobando simultaneamente múltiplos elementos metereológicos.

As dezenas de crianças que tomam conta dos sítios da cidade, em New London Calling, de Alla Kovgan, criam uma atmosfera permeada pelo lúdico. Não vemos nenhum carro em trânsito, nenhum sujeito correndo atrasado para o trabalho, ninguém preocupado atravessando os cenários da cidade. Apenas um turbilhão multicolorido de crianças e adolescentes se divertindo, criando e recriando relações entre si e entre eles e o ambiente urbano. O espectador talvez sinta vontade, um tanto nostálgica, de fluir entre os personagens para despreocupadamente divertir-se, instaurando outras possibilidades de vivência para o corpo na trama da cidade. Já em Enterprise, de Mauricio Quiroga, acompanhamos a trajetória de um sujeito carregando um boneco maior que ele mesmo, ganhando ruas e esquinas, indo ao encontro de um parque de diversões. Com uma fotografia em preto e branco, uma montagem de som alucinante, o filme explora as fusões entre o corpo humano e a máquina, os arrebatamentos provocados pela fricção entre os movimentos humanos e as vertigens das velocidades mecânicas. Podemos fazer associações com outras realizações, como o Ballet Mécanique, de Fernand Léger, por exemplo.

Electric Light Wonderland, de Susanna Wallin, apresenta uma família (um pai e dois filhos) se preparando para a realização de sua noite de discoteca móvel, com a profusão de luzes e formas. Aqui o movimento diz respeito tanto ao exercício de preparação da festa, quanto aos ritmos internos dos garotos do filme, mergulhados numa jornada interior evocando as falas da festa por vir. O filme sugere mais coisas que as explicita e é na maior parte do tempo monótono. Movimenti Di Um Tempo Impossibile, do coletivo italiano Flatform, é um delicado registro de invenção do espaço de uma ruína com uma temporalidade atravessada simultaneamente por neve, chuva, neblina e vento. Os quatro elementos são contemporâneos deste tempo mítico, surreal, lírico, costurados aos movimentos musicais da trilha, um quarteto de Maurice Ravel. O filme é uma fantasia sutil, apontando para o terreno onírico de apreensões mágicas da vida.

O trânsito confuso entre memória, sonho e realidade é a carta na manga de Cat Effekt, da dupla Gustavo Jahn e Melissa Dullius. O filme arremessa o espectador numa torrente de imagens delirantes, com as quais não é possível constatar hierarquias entre o mundo da vigília e do sonho. A jovem protagonista deambula por Moscou, se entrega a certos acontecimentos magnéticos, que se repetem, e se recriam com pequenas modificações. Cat Effekt é uma invenção lisérgica interessada numa percepção não planificada dos fluxos da vida. Pode jogar o espectador numa terra que este já tenha visto em sonho ou, ainda, ser uma porta aberta para as sensações multicoloridas vividas num chá de cogumelos das cinco horas da tarde.

INTERNACIONAL 1 – SINFONIAS INDUSTRIAIS DE CINEMA

Bárbara Buril

Encantos e desencantos do movimento

O movimento preenche o tempo. Encanta. Envolve. E enlouquece. As maravilhas e os infortúnios de pessoas e coisas sujeitas ao mover-se estiveram presentes na essência temática do Programa de Curtas Internacionais 1. Sob o título Sinfonias Industriais de Cinema, o bloco de curtas exibiu películas experimentais, em que as questões do deslocamento estão na própria formação técnica do filme.

Em Movimenti Di Un Tempo Impossible (Flatform, 2011), o tempo preenche o próprio tempo. Vê-se uma casa antiga, sujeita às intempéries da natureza. Não há ações humanas. Todas as mudanças realizadas na paisagem são causadas pela chuva, neve, neblina e pelo vento. O dançar das árvores ao redor da casa, embalado pelo Allegro Moderatto de Maurice Ravel, nada mais é que o agir do tempo.

Assim como se propaga no tempo, o movimento também se estende no espaço. O média-metragem Cat Effekt (Gustavo Jahn e Melissa Dullius, 2011) mostra o transitar de uma mulher por uma fria e sombria Moscou. À deriva, a personagem, ao circular por ruas, metrôs e passarelas subterrâneas, é atraída pelas mesmas pessoas inúmeras vezes. A película também problematiza questões como o fluxo contínuo dos seres, a falta de maciez do contemporâneo e a solidão, todas imbricadas em relações de causa e efeito.

O movimento encantado está em New London Calling (Allá Kovgan, 2010), Enterprisse (Mauricio Quiroga, 2010) e Electric Light Wonderland (Susanna Wallin, 2010). No primeiro, um grupo de crianças faz coreografias pela cidade de New London. Apesar do interessante jogo fílmico com imagens e sons, falta aprofundamento. Quem são mesmo essas crianças que se diferenciam, apenas, pela cor da camiseta? O que quer dizer a coreografia de Alissa Cardone? Por que New London? As imagens estão pelas imagens.

Em Enterprisse, o movimento inicia lento. Um homem leva um boneco de Woody, de Toy Story, para um parque de diversões. Lá, admira-se com o movimento das máquinas e põe-se em posição contemplativa. A partir de então, as imagens vistas pelo homem inundam o espectador, com a rapidez própria das máquinas do parque. O movimento se acelera. Tanto o homem se encanta, quanto o espectador.

Assim como Cat Effekt, Electric Light Wonderland também se expande para outros terrenos de discussão. Apesar de trabalharem com iluminação de festas, um pai e seus três filhos vivem em clima de tensão. Com a seriedade da velhice, o homem profissionaliza a magia das luzes e reprime a imersão dos garotos no universo maravilhoso. O programa Sinfonias Industriais de Cinema mostra-se coeso: ao falar de movimento, sublinha que tempo e espaço geram encantos e desencantos.

BRASIL 1 - GRITOS PRIMAIS

Liana Cirne Lins

Da Origem (2011), filme de Fabio Baldo, nos leva aos tempos das cavernas em que a vida girava em torno da sobrevivência e da habilidade para fazer fogo. Com belíssima fotografia, o filme resgata em nós o primitivo, a nossa índole de sobrevivência destituída de qualquer justificação. Dos inventos do homem desde o fogo talvez o mais significativo seja a comunicação. Ela tornou complexa a vida e trouxe com ela o questionamento acerca da nossa existência. E ainda assim somos capazes de nos identificar com aqueles homens das cavernas. Quanto mais complexos tornam-se nossos problemas, mais resgatamos nossa necessidade básica e instintiva de sobreviver.

Avalons, de Carlos Eduardo Nogueira (2011), é um filme que se passa num ambiente medieval contrastado por uma estética contemporânea sobre uma princesa disputada por dois cavalheiros e que se casa com o vencedor do duelo grávida do perdedor, enganando levianamente ambos. O filme confirma que o bom uso da computação gráfica e uma proposta estética arrojada não são suficientes para melhorar uma má história.

Porcelana (2010), de Thiago Taves, é a história de uma mulher aprisionada e de seu algoz, um homem aparentemente dócil, que dela cuida com dedicação. O plano inicial do filme sugere que a mulher seja uma estátua que é aperfeiçoada pelo criador. O filme poderia ser lido como uma metáfora para a opressão da mulher, que deve manter-se sempre bela e disponível. Mas no momento da fuga da mulher descobrimos um terceiro personagem que inova a trama: o espectador. A mulher tem de nos desacorrentar para que possamos fugir com ela. Entretanto, o espectador é atingido pela espingarda do homem enquanto a mulher consegue fugir. A liberdade vence, mas só para quem tem ação, força e coragem para conquistá-la. Quem apenas assiste a vida acontecer sem tornar-se protagonista da história permanece escravizado e testemunha a própria vida acabar.

Cachoeira (2010), de Sergio José de Andrade, é um filme baseado em fatos reais sobre jovens indígenas que se iniciam num ritual suicida encorajados por uma beberagem feita com muita cachaça e toda a sorte de alucinógenos, incluindo nicotina e acetona. A ingestão da bebida é embalada por um rock agressivo e o ritual termina com a precipitação dos jovens para a cachoeira onde encontram a morte. Cachoeira inicia com o depoimento de um índio ancião dizendo do quanto os jovens confundiram todo o ritual. E o filme é sobre confusão, a confusão que decorre da incapacidade de fusão das culturas com que forçosamente convivem. Culturas que não dialogam e se excluem mutuamente levando à falta de perspectivas desses jovens que não veem no futuro qualquer oportunidade de melhora.

Dona Sônia Pediu Uma Arma Para Seu Vizinho Alcides (2011), de Gabriel Martins, nos traz a história de Dona Sônia que busca vingar-se do jovem que matou friamente seu filho. É um filme que brinca com a máxima de que o roteiro deve explicar-se por si só e que usa não atores nos papeis de Dona Sônia e de Alcides.

Em dois momentos, é necessário que se explique a trama ao expectador – a sede de vingança de Dona Sônia e a paixão de seu vizinho por ela, pois sem isso seria impossível compreender o que pretende que se aconteça no filme. A cena de vingança que seria o clímax é marcada pela espera de Dona Sônia bocejando, coçando o cabelo e entediada com a filmagem. Talvez se pretendesse uma crítica ao patético da violência, mas nesse caso a ruptura com os padrões tradicionais de cinema foi suficiente apenas para confirmar o quanto esses padrões são necessários.

FEBRE DO RATO

Liana Cirne Lins

Leptospirose é doença que costuma ser diagnosticada apenas depois de causar a morte. Claudio Assis fez um filme sobre um Recife que não sabe que está doente e que não sabe de qual doença sofre.

Febre do Rato (2011) nos traz um poeta que é profeta da doença e da cura. Um homem anárquico que dirige pelas ruas da cidade, alto-falante em punho, e navega pelo rio Capibaribe, conhecendo as pessoas, distribuindo o jornal que produz em seu precário ateliê e que leva o título do filme, declamando poesia, inflamando as pessoas para que não se acomodem, incitando-as para o exercício do incômodo. Os dramas pessoais, acentuados por excelentes atuações, cruzam-se com os da cidade.

O filme carrega a contradição de ser uma defesa da liberdade e da liberdade sexual – algumas das melhores cenas são de sexo, marcadas pelo lúdico e pela leveza – ao mesmo tempo em que seu protagonista afirma apaixonar-se por sua musa porque ela recusa-se à entrega, como quem não resiste à própria armadilha.

A narrativa apaixonada e extremista, como os discursos do poeta e do próprio Claudio Assis, é reforçada pela câmera que mostra a cidade de baixo, do ponto de vista do rio e dos pescadores, e pelo uso da câmera vista de cima, acompanhando as pessoas, sua nudez e seus movimentos.

A beleza natural da cidade com suas cores marcantes é embotada pelo preto e branco do filme, que se torna uma metáfora para a necessidade do cuidado.

No clímax do filme, a musa entrega-se ao poeta. Em uma manifestação organizada por ele, a chegada da amada transmuda o discurso político em poema de amor. Ali, em público, os dois desnudam-se, mas o ritual amoroso não se consuma. É interrompido pelo estado-polícia. O poeta é jogado ao rio e aos ratos. É a morte da poesia.

Febre do Rato é um filme apaixonado, uma crítica tão íntima que se converte em elogio às pessoas, ao amor e à cidade onde vivemos e amamos.

FEBRE DO RATO

José Juva

Febre do Rato: poesia, cinema e libertinagem

O escritor surrealista André Breton afirmava que “a poesia se faz na cama como o amor”. Numa paráfrase mais aguda, o poeta Roberto Piva declarava que “a poesia é uma fascinante orgia ao alcance do homem”, incluindo a recíproca de que “a orgia é poética”. Reiterando estes apontamentos e tecendo outros, o diretor pernambucano Claudio Assis, em Febre do Rato, longa-metragem exibido na noite de abertura da IV Janela Internacional de Cinema do Recife, explora as fricções entre o corpo e a palavra, entre o gesto comportamental e o jorro lírico, entre as irrupções do desejo e os cercos do cotidiano - múltiplas camadas de significados possíveis de serem apreendidos nas quase duas horas de filme.

Febre do Rato apresenta recortes em preto e branco da vida do poeta Zizo, interpretado por Irandhir Santos. Zizo, um sujeito performático, pontua os momentos vividos com amigos, parentes e desconhecidos com a capacidade de incêndio e de sublime da palavra poética: recita poemas em churrascos, dirige poemas aos amigos - como o casal Pazinho (Mateus Nachtergaele) e a travesti Vanessa (Tânia Moreno) - e, principalmente, distribui o fanzine que dá nome ao filme, bradando no sistema de som de uma variant. Claudio Assis, com Febre do Rato, manifesta a idéia de que a arte pode ser um dispositivo de libertação psicológica, uma possibilidade de cura e guerrilha que faça frente ao cerceamento das liberdades e ao esmagamento e à padronização das vontades.

Agenciados no terreno fértil da poesia, a nudez, o lúdico, a embriaguez e o irracional ampliam os entendimentos e as sensações sobre a prática política, sobre a necessidade de posicionamentos diários dos sujeitos no rio da existência, confundindo propositadamente as fronteiras entre vida e arte. Zizo, na sua jornada rumo ao desregramento de todos os sentidos faz-se vidente (como preconizou Rimbaud), torna-se veículo de sensibilidades libertárias, congrega as vozes de homens e mulheres que deliberadamente, deliciosamente subvertem os comportamentos estabelecidos e sustentados na moral hegemônica.

Assim podemos ler as sugestões das trepadas coletivas, a traição com a mulher do vizinho numa caixa d’água, as masturbações na máquina de xerox e na posse dos poemas do fanzine, o desejo de contemplar a garota desejada urinando, a cannabis sativa geradora de momentos ternos de sociabilidade, etc. E mesmo morto pela polícia militar, tendo sido jogado ao Rio Capibaribe, Zizo permanece infiltrado, entranhado ao corpo dos personagens envolvidos por sua vida. Embora desigual, ligeiramente repetitivo e diluído em seus movimentos finais, Febre do Rato consegue entrelaçar instantes geniais a um conjunto de visões provocadoras, construindo a imagem de um Recife delirante, que está além das fábulas das fronteiras entre o feio e o belo, entre o sublime e o escatológico, entre a poesia e a vida.

sábado, 5 de novembro de 2011

FEBRE DO RATO

Bárbara Buril

O universo flaneur de Febre do Rato

Viver ou não viver os espaços urbanos? Eis a questão. Sob a ótica do flaneur, própria do homem que pode sentir o espírito de uma cidade, Recife pode ser maravilhosa. Apesar do barulho e do mal cheiro, sempre é possível "dar um chute no ovo da ordem", como propôs o poeta Zizo (Irandhir Santos), protagonista do novo filme de Cláudio Assis Febre do Rato. Exibido, ontem (4), no IV Janela Internacional de Cinema do Recife, a Febre lotou o Cinema São Luís.

Em A Febre do Rato, é feita uma densa problematização das questões urbanas do Recife: as favelas estão ao lado de grandes prédios empresariais, o cheiro piora, o barulho ensandece. Zizo, ao divulgar a nova edição do seu periódico marginal Febre do Rato grita em alto- falantes: "Vocês sabem o barulho que essa cidade tem. Vocês sabem o gosto. O cheiro". Todos sabem - nada mais precisa ser dito. Alter-ego de um sem número de recifenses, Zizo denuncia inquietações generalizadas. Diz que quer voltar para a praia: "meu ceu".

Está situado no contraponto do caos urbano o universo de Zizo. Ainda não atingidos pelo fenômeno contemporâneo do ser blasé – em que o excesso de informações atomiza o homem para o toque - os sujeitos de Febre compartilham os corpos, os copos e o tempo. São flaneurs por viverem os parques, as paisagens, os rios e as pontes da cidade. Para eles, todo mundo precisa de amor.

Com a fotografia de Walter Carvalho, o filme inunda a plateia com imagens belíssimas das vivências do grupo. As tomadas de cima, os deslizamentos de câmera e a escolha pelo preto e branco, em tempos de blu-ray, surpreenderam o público pela ousadia e pela exigência de uma postura contemplativa. Cenas como a do ménage, filmada de cima, encerraram uma beleza inefável. Além de ser menos apelativo que em Amarelo Mangua (2003) e Baixio das Bestas (2007), o sexo em Febre têm mais amor.

Apesar das possíveis rê-bordosas, é preciso ser vivo na vida. “O placar pode não ser justo, mas a partida é boa pra caralho”, confessa Zizo para Pazinho (Matheus Nachtergaele), ironicamente um coveiro. Enterrar mortos-vivos é o intento dos flaneurs de Febre. Propõem liberdade no dia da independência. Pedem anarquia e sexo. Podem até pagar o pato, mas não importa, porque “os afoitos se completam”.