Nathalia Pereira
O programa nacional Estamos Todos Juntos foi reprisado quinta-feira (18/11) no cinema da Fundação. Cinco curtas formam esse bloco e todos eles falam sobre o amor, em suas expressões mais inocentes e sinceras. A forte presença da infância e dos laços familiares, abordada com muito realismo, faz com que o programa transmita sensações de intimidade e reconhecimento para o público. É uma das sessões mais carismáticas da Janela.
A começar pelo filme de Ricardo Targino, Ensolarado (2010), em que a iminência da partida do lar amedronta a menina Lena. Ela precisa mudar-se de onde cresceu para “clarear a vista” em outro lugar, como diz sua avó. A menina não pertence mais ao sertão, embora continue apegada a ele, e a necessidade de ir além da tristeza para descobrir novos caminhos é a mensagem forte do filme, que pode ser resumida no conselho da avó: “Cantar bem mais forte que a dor, se a dor for maior que o peito”. Lena tenta fugir da nova fase, e a câmera corre atrás dela, filmando seus pés indecisos, até que ela acaba por convencida. Da tranqüilidade daquele lugar, leva uma tartaruga como lembrança e, para o sol forte que incomodava tanto, encontra um par de óculos escuros, primeira descoberta no novo caminho.
O segundo curta do programa, Avós (Michael Wahrmann, 2009), provoca deja-vus. A câmera super-8 que Leo recebe do avô registra cenas que seguramente causam nostalgia em muitos dos espectadores que conviveram com esses parentes. Por exemplo, a insistência para que o neto coma, recorrente no filme, é a demonstração universal de afeto das avós, pois “coma mais, meu filho” é “eu te amo” para elas, todo mundo sabe. E o curta de Targino explora esse carinho com humor, conquistando pelo registro das expressões corriqueiras. Além disso, o filme explora o contraste entre a ingenuidade infantil e as lembranças de quem já sofreu muito. A naturalidade com que Leo pergunta se a avó esteve em Auschwitz não entende o silêncio bruto em retorno.
Já Perto de Casa (2009), foi dirigido por Sérgio Borges, mas o comando das situações pertence mais aos seus filhos, Iel e Ravi, filmados durante um passeio. O diálogo que as crianças estabelecem com a câmera e entre si ajuda o filme caseiro a agregar um valor maior, pois explora de forma interessante, tanto a espontaneidade dos meninos, quanto suas relações com a imagem. Como quando o menor deles não se importa em ficar pelado diante da câmera, mas se esconde quando passa algum desconhecido por perto. Ele não reconhece que o destino daquelas imagens captadas pode ser a projeção para muitos outros estranhos, e se permite agir naturalmente em suas brincadeiras.
O filme seguinte, Querida Mãe (Patrícia Cornils, 2009) parece fugir um pouco do olhar infantil que vinha sendo seguido pelo programa. Mas o que se percebe quando Patrícia vai relendo as cartas escritas por sua mãe é que a necessidade de sentir a presença da figura materna, ausente há muito tempo, se assemelha à de uma criança. A descoberta da intimidade de uma mãe com quem quase não conviveu – e o registro desse percurso em vídeo - parece ser uma tarefa necessária para que um espaço vazio seja preenchido.
Voltando à infância, de forma mais explícita, Balanços e Milkshakes (Erick Ricco e Fernando Mendes, 2009) é uma animação em rotoscopia que revela um primeiro amor, com indícios de sexualidade sendo descoberta. A relação entre as duas crianças que se apaixonam lembra o clássico Bentinho versus Capitu, em que a menina é responsável por certa malícia que hipnotiza e influencia o outro. A inocência em Estamos Todos Juntos é sutilmente perdida nesse fim.
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
domingo, 21 de novembro de 2010
Internacional 5 – Estados Alterados
Yuri Assis
Uma primeira impressão do programa Estados Alterados, exibido segunda (15) e quinta (18) no São Luiz, pode afastar o espectador de mensagens que não se pretendem diretamente expressadas. Quando o caso é experimentar, calma e atenção são necessárias para entender o que está projetado na tela.
Em If There Be Thorns (Michael Robinson, 2009), uma voz em off narra acontecimentos enquanto imagens vão tecendo metáforas além da compreensão comum. É um filme cujas entrelinhas assumem o papel mais importante. Em poesia, ganha muito. O diálogo com o público, todavia, fica prejudicado, exigindo um esforço de aprofundamento nos símbolos que apresenta. Da mesma forma, A History of Mutual Respect (Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, 2010) se concentra numa situação que é mais do que parece: dois jovens partem numa viagem que se fia nos significados ocultos. Contudo, neste caso há um enredo mais explícito para dar chance à adivinhação.
Floating Head (Ben Dickinson, 2010) e Health - We Are Water (Eric Wareheim, 2010) dão lugar no Janela para o nonsense, ambos trazendo o gênero do horror ora sob o viés do humor ora sob o viés da estética trash. O primeiro já deixa o recado de que ali nada deve ser levado a sério. O segundo, idealizado como videoclipe para a música We Are Water da banda norte-americana Health, fica na beira do conceitual, mas sem firmar um compromisso estrito de fazer sentido.
Narrativas mais próximas à realidade surgem com o espanhol Jesusito de Mi Vida (Jesus Perez-Miranda, 2009). Neste curta, entra em cena Jesus, um menino de seis anos de idade, que tem medo de atravessar o corredor escuro para chegar ao banheiro. Recorre à fé em busca de ajuda, mas, por causa da omissão da providência divina, se vê diante de uma lição muito dura. A gente sai da sala de cinema certos de que o fato banal terá repercussões bem sérias nas crenças do menino. Está aí uma crítica muito bem construída ao fanatismo das religiões cegas.
Na mesma tendência, o peruano El Paraiso de Lili (Melina Leon, 2009) pontua um momento político no Estados Alterados. Graças à influência de seu irmão, Lili descobre, nos últimos suspiros da Guerra Fria, que o mundo é uma eterna disputa de poder mesmo nas relações mais corriqueiras. As cenas em preto-e-branco ganham cor para contrastar o mundo real com as fantasias da menina, que, embora idealizem um universo descomplicado, reflete questões daquele.
A animação Dot, rodada pelo duo Sumo Science em 2010, dá uma trégua para o espectador saturado de alegorias cujo sentido precisa ser resgatado. Gravado num Nokia N8, utiliza o acessório CellScope, que permite ampliar imagens microscópicas. Por último, Fear Thy Not (Sophie Shernan, 2010) mostra uma pessoa filmando o esforço de superar o próprio medo – não seria esta a comparação mais justa com a condição do público deste programa?
Uma primeira impressão do programa Estados Alterados, exibido segunda (15) e quinta (18) no São Luiz, pode afastar o espectador de mensagens que não se pretendem diretamente expressadas. Quando o caso é experimentar, calma e atenção são necessárias para entender o que está projetado na tela.
Em If There Be Thorns (Michael Robinson, 2009), uma voz em off narra acontecimentos enquanto imagens vão tecendo metáforas além da compreensão comum. É um filme cujas entrelinhas assumem o papel mais importante. Em poesia, ganha muito. O diálogo com o público, todavia, fica prejudicado, exigindo um esforço de aprofundamento nos símbolos que apresenta. Da mesma forma, A History of Mutual Respect (Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, 2010) se concentra numa situação que é mais do que parece: dois jovens partem numa viagem que se fia nos significados ocultos. Contudo, neste caso há um enredo mais explícito para dar chance à adivinhação.
Floating Head (Ben Dickinson, 2010) e Health - We Are Water (Eric Wareheim, 2010) dão lugar no Janela para o nonsense, ambos trazendo o gênero do horror ora sob o viés do humor ora sob o viés da estética trash. O primeiro já deixa o recado de que ali nada deve ser levado a sério. O segundo, idealizado como videoclipe para a música We Are Water da banda norte-americana Health, fica na beira do conceitual, mas sem firmar um compromisso estrito de fazer sentido.
Narrativas mais próximas à realidade surgem com o espanhol Jesusito de Mi Vida (Jesus Perez-Miranda, 2009). Neste curta, entra em cena Jesus, um menino de seis anos de idade, que tem medo de atravessar o corredor escuro para chegar ao banheiro. Recorre à fé em busca de ajuda, mas, por causa da omissão da providência divina, se vê diante de uma lição muito dura. A gente sai da sala de cinema certos de que o fato banal terá repercussões bem sérias nas crenças do menino. Está aí uma crítica muito bem construída ao fanatismo das religiões cegas.
Na mesma tendência, o peruano El Paraiso de Lili (Melina Leon, 2009) pontua um momento político no Estados Alterados. Graças à influência de seu irmão, Lili descobre, nos últimos suspiros da Guerra Fria, que o mundo é uma eterna disputa de poder mesmo nas relações mais corriqueiras. As cenas em preto-e-branco ganham cor para contrastar o mundo real com as fantasias da menina, que, embora idealizem um universo descomplicado, reflete questões daquele.
A animação Dot, rodada pelo duo Sumo Science em 2010, dá uma trégua para o espectador saturado de alegorias cujo sentido precisa ser resgatado. Gravado num Nokia N8, utiliza o acessório CellScope, que permite ampliar imagens microscópicas. Por último, Fear Thy Not (Sophie Shernan, 2010) mostra uma pessoa filmando o esforço de superar o próprio medo – não seria esta a comparação mais justa com a condição do público deste programa?
Brasil 7 - De frente para a cidade -
Márcio M. Andrade
Ao olhar para os lugares onde habitamos de dentro para fora ou de fora para dentro, percebemos os meandros que saltam aos olhos e seguem além do simples concreto, mas tornam-se sensações que carregamos dentro de nós. Dessas sensações, o programa De frente para a cidade explora seus trabalhos.
Da sequidão nordestina, surge o primeiro curta – O Som do Tempo (Petrus Cariry, 2010) –, em que o espectador, de início amedrontado com os gigantes letreiros iniciais, mergulha sem medo na realidade miúda que o diretor exibe através de uma inspirada paleta de cores e monocromias e uma sonoridade quase sólida de tão presente, composta pelos sons diegéticos. Sem se prender ao ambiente sertanejo onde se fundamenta, o curta se universaliza ao deslocar sua câmera pelo mínimo, pelo zoom extremo ao cotidiano, onde sons e ritmos triviais compõem uma sinfonia sobre a própria passagem do tempo: ele não nos pertence, mas somos nós que caminhamos por sua estrada.
Transitando através das complicações do ajuntamento social, político, histórico das pessoas que nele habitam, Dias de Greve (Adirley Queirós, 2009) mostra-se um curta bem produzido, mas pouco inspirado – no quesito roteiro, direção e interpretação – para tratar dos embates entre as lutas trabalhistas a necessidade de sobrevivência. O espectador acompanha sem muita expectativa as discussões dos proletários grevistas, dos fura-greves e a relação posterior ao retorno para o trabalho, em que opressor e oprimido mantém-se da mesma forma – sintetizado pela cena final, onde, embora no mesmo lugar, os homens ainda assim deixam-se levar pelas relações hierárquicas.
Caminhando na contramão dos curtas anteriores através da criação de um mito dentro do universo urbano da Bahia, O sarcófago (Daniel Lisboa, 2010) mostra a composição primitiva e apocalíptica de um artista plástico para sua maior obra de arte: ele mesmo. Lisboa, através de uma edição precisa, uma trilha sonora contundente e impulsionante e enquadramentos estudados, consegue compor a dinâmica de sua personagem e permitir que o filme seja completamente dela. Religião e futurismo se mesclam em um Frankenstein estranho aos olhos da cidade, mas que comunica essa necessidade de transcender as barreiras temporais e espaciais da representação de si mesmo para seus companheiros de comunidade.
Finalizando esse ciclo – que parte de um olhar dos pertencentes à comunidade e chegando a um olhar marginal -, o curta Bailão (Marcelo Caetano, 2009) trata de um salão em São Paulo que reúne homossexuais de todas as faixas etárias pelo único propósito de comungar um momento: a dança. A partir de depoimentos de participantes de um “submundo” homossexual, o diretor costura uma relação de opressão em relação à cidade, à comunidade que segrega aqueles que optam por assumir uma sexualidade diferente dos padrões. Mesmo sem inovar esteticamente, o curta propõe um painel honesto de um arrependimento pelo que não se viveu, onde público e o particular se misturam com uma historicidade doída pelo amor não-concretizado.
Através de olhares tão pessoais sobre o lugar onde se vive, seus diretores mostram que as relações que se estabelecem na comunidade podem ser de afeto ou rejeição, de aceitação e medo, por que nossos habitats influenciam e são influenciados por aqueles que deles participam, sejam cineastas ou espectadores.
Ao olhar para os lugares onde habitamos de dentro para fora ou de fora para dentro, percebemos os meandros que saltam aos olhos e seguem além do simples concreto, mas tornam-se sensações que carregamos dentro de nós. Dessas sensações, o programa De frente para a cidade explora seus trabalhos.
Da sequidão nordestina, surge o primeiro curta – O Som do Tempo (Petrus Cariry, 2010) –, em que o espectador, de início amedrontado com os gigantes letreiros iniciais, mergulha sem medo na realidade miúda que o diretor exibe através de uma inspirada paleta de cores e monocromias e uma sonoridade quase sólida de tão presente, composta pelos sons diegéticos. Sem se prender ao ambiente sertanejo onde se fundamenta, o curta se universaliza ao deslocar sua câmera pelo mínimo, pelo zoom extremo ao cotidiano, onde sons e ritmos triviais compõem uma sinfonia sobre a própria passagem do tempo: ele não nos pertence, mas somos nós que caminhamos por sua estrada.
Transitando através das complicações do ajuntamento social, político, histórico das pessoas que nele habitam, Dias de Greve (Adirley Queirós, 2009) mostra-se um curta bem produzido, mas pouco inspirado – no quesito roteiro, direção e interpretação – para tratar dos embates entre as lutas trabalhistas a necessidade de sobrevivência. O espectador acompanha sem muita expectativa as discussões dos proletários grevistas, dos fura-greves e a relação posterior ao retorno para o trabalho, em que opressor e oprimido mantém-se da mesma forma – sintetizado pela cena final, onde, embora no mesmo lugar, os homens ainda assim deixam-se levar pelas relações hierárquicas.
Caminhando na contramão dos curtas anteriores através da criação de um mito dentro do universo urbano da Bahia, O sarcófago (Daniel Lisboa, 2010) mostra a composição primitiva e apocalíptica de um artista plástico para sua maior obra de arte: ele mesmo. Lisboa, através de uma edição precisa, uma trilha sonora contundente e impulsionante e enquadramentos estudados, consegue compor a dinâmica de sua personagem e permitir que o filme seja completamente dela. Religião e futurismo se mesclam em um Frankenstein estranho aos olhos da cidade, mas que comunica essa necessidade de transcender as barreiras temporais e espaciais da representação de si mesmo para seus companheiros de comunidade.
Finalizando esse ciclo – que parte de um olhar dos pertencentes à comunidade e chegando a um olhar marginal -, o curta Bailão (Marcelo Caetano, 2009) trata de um salão em São Paulo que reúne homossexuais de todas as faixas etárias pelo único propósito de comungar um momento: a dança. A partir de depoimentos de participantes de um “submundo” homossexual, o diretor costura uma relação de opressão em relação à cidade, à comunidade que segrega aqueles que optam por assumir uma sexualidade diferente dos padrões. Mesmo sem inovar esteticamente, o curta propõe um painel honesto de um arrependimento pelo que não se viveu, onde público e o particular se misturam com uma historicidade doída pelo amor não-concretizado.
Através de olhares tão pessoais sobre o lugar onde se vive, seus diretores mostram que as relações que se estabelecem na comunidade podem ser de afeto ou rejeição, de aceitação e medo, por que nossos habitats influenciam e são influenciados por aqueles que deles participam, sejam cineastas ou espectadores.
Internacional 6 – Caro Diário
Márcio M. Andrade
Um registro de verdades íntimas. Assim se pode pensar o programa internacional Caro Diário, que une seus curtas por uma temática centrada nas descobertas e sentimentos individuais diante do mundo e, do mesmo modo, com uma estética semelhante: registros naturalistas, como se a câmera participasse daquele ambiente.
O primeiro curta da noite – Blokes (Marialy Rivas, 2010) – mostra a descoberta da sexualidade de dois rapazes durante o cerco provocado pela ditadura militar, em que a coação já havia se tornado lugar comum para todos. Com excelentes interpretações e um roteiro enxuto, o diretor compõe um cenário não-melodramático de uma sexualidade que nunca se mostra deveras sofrida, mas como um desvio às convenções rígidas.
Androids (Maria Pérez, 2010), por sua vez, trata da exclusão social onde os algozes, na verdade, ganham o rosto da família: em um subúrbio quase idílico, um rapaz une-se à sua vizinha deficiente para formar um clube do OVNI, algo visto com bastante estranheza por todos que os cercam. De forma bastante convencional e abusando dos estereótipos, o diretor conduz suas protagonistas com destreza até sua tentativa de redenção, onde o desejo de ir embora não toma simplesmente ares de fuga, mas de um retorno ao seu “lar original”. Se o riso pela situação absurda de ambos surge, é pela identificação extrema com cada um de nós que se sente “desencaixado” dos padrões.
Seguindo a mesma esteira familiar, Dans nos veines (Guillaume Senez, 2010) trata de um pós-adolescente que, por conta das brigas familiares, teme perpetuar o estereótipo de paternidade que sempre acompanhou e padeceu em casa. Esteticamente, seu diretor se mostra seguro de suas intenções através de atores extremamente à vontade com seus personagens, permanecendo sempre desafiados pelas ações do outro. Se, em alguns momentos, os diálogos explicam excessivamente os sentimentos das personagens, acontece como na vida, quando nem sempre estamos à vontade para agir e explicar-se em demasia termina se tornando uma alternativa que traga mais alívio.
Encerrando esse ciclo sobre individualidades e familiaridades “disformes”, En suspension (Fanny dal Magro, 2009) mostra uma mãe solteira que cuida de uma filha que a reprime com seus desejos e carências insaciáveis, através de um roteiro sutil e interpretações cativantes que contrabalançam densidade e leveza com elegância. O desejo de se tornar responsável se desequilibra quando a ânsia de fugir das conseqüências que vêm a partir dele termina por sufocar a experiência da maternidade. Contudo, o cineasta não se mostra pessimista: como atesta a cena final, por mais difícil que seja continuar, o amor e o perdão surgem para trazer de volta as razões que permeiam esse desejo do compromisso.
Indivíduos que participam da sociedade. Comunidade que interfere nas decisões do indivíduo. Ao sair da sala de cinema, o espectador se revê como protagonista de seu próprio diário, como uma carta de desafio para os que o rejeitam ou uma declaração de amor àqueles que abrem seus braços para recebê-lo.
Um registro de verdades íntimas. Assim se pode pensar o programa internacional Caro Diário, que une seus curtas por uma temática centrada nas descobertas e sentimentos individuais diante do mundo e, do mesmo modo, com uma estética semelhante: registros naturalistas, como se a câmera participasse daquele ambiente.
O primeiro curta da noite – Blokes (Marialy Rivas, 2010) – mostra a descoberta da sexualidade de dois rapazes durante o cerco provocado pela ditadura militar, em que a coação já havia se tornado lugar comum para todos. Com excelentes interpretações e um roteiro enxuto, o diretor compõe um cenário não-melodramático de uma sexualidade que nunca se mostra deveras sofrida, mas como um desvio às convenções rígidas.
Androids (Maria Pérez, 2010), por sua vez, trata da exclusão social onde os algozes, na verdade, ganham o rosto da família: em um subúrbio quase idílico, um rapaz une-se à sua vizinha deficiente para formar um clube do OVNI, algo visto com bastante estranheza por todos que os cercam. De forma bastante convencional e abusando dos estereótipos, o diretor conduz suas protagonistas com destreza até sua tentativa de redenção, onde o desejo de ir embora não toma simplesmente ares de fuga, mas de um retorno ao seu “lar original”. Se o riso pela situação absurda de ambos surge, é pela identificação extrema com cada um de nós que se sente “desencaixado” dos padrões.
Seguindo a mesma esteira familiar, Dans nos veines (Guillaume Senez, 2010) trata de um pós-adolescente que, por conta das brigas familiares, teme perpetuar o estereótipo de paternidade que sempre acompanhou e padeceu em casa. Esteticamente, seu diretor se mostra seguro de suas intenções através de atores extremamente à vontade com seus personagens, permanecendo sempre desafiados pelas ações do outro. Se, em alguns momentos, os diálogos explicam excessivamente os sentimentos das personagens, acontece como na vida, quando nem sempre estamos à vontade para agir e explicar-se em demasia termina se tornando uma alternativa que traga mais alívio.
Encerrando esse ciclo sobre individualidades e familiaridades “disformes”, En suspension (Fanny dal Magro, 2009) mostra uma mãe solteira que cuida de uma filha que a reprime com seus desejos e carências insaciáveis, através de um roteiro sutil e interpretações cativantes que contrabalançam densidade e leveza com elegância. O desejo de se tornar responsável se desequilibra quando a ânsia de fugir das conseqüências que vêm a partir dele termina por sufocar a experiência da maternidade. Contudo, o cineasta não se mostra pessimista: como atesta a cena final, por mais difícil que seja continuar, o amor e o perdão surgem para trazer de volta as razões que permeiam esse desejo do compromisso.
Indivíduos que participam da sociedade. Comunidade que interfere nas decisões do indivíduo. Ao sair da sala de cinema, o espectador se revê como protagonista de seu próprio diário, como uma carta de desafio para os que o rejeitam ou uma declaração de amor àqueles que abrem seus braços para recebê-lo.
sábado, 20 de novembro de 2010
Internacional 5 – Estados Alterados
Poliana Dantas
De perto, só a câmera é normal
Existe uma tendência humana contemporânea de dar, com maior frequência, “vazão” aos estados de espírito mais incomuns e perturbantes; ações que rompem os limites da rebeldia fundamentada, dos sentidos táteis, das (suportáveis) relações entre dois ou mais seres, até mesmo da loucura iminente, elas são esporadicamente jogadas em um determinado espaço, sem nenhuma pretensão com o que pensem ou deixem de pensar acerca do seu conceito. Assim poderíamos resumir o experimentalismo quase non-sense que foi a Mostra Internacional 5 – Estados Alterados (até o título já funciona como um prelúdio do sentimento do espectador durante a sessão).
No curta “A History of Mutual Respect” (foto)(Gabriel Arantes / Daniel Schmit, 2010) já é possível prever a carga pesada de humor negro (literalmente) e misógino na história de dois rapazes que buscam, durante uma viagem meio que epifânica, encontrar a essência da miscigenação ideal, pura – mesmo que isso apenas se resuma à cópula prosaica e programada, para fins de perpetuação da espécie (seria isso uma sátira às concepções anteriores ou um ressentimento enrustido de ex-colonizador?). Já em “Floating Head” (Bem Dickinson, 2010) e “Health – We Are Water” (Eric Wareheim, 2010), é nítido a repulsão e o choque causados não só pelo caráter trash e de escárnio que eles adquirem, como também pela necessidade norte-americana latente de expressar seus alteregos utilizando elementos bizarros e excêntricos, flertando intrinsecamente com distúrbios e desejos de poder unitários.
Em "If There Be Thorns" (Michael Robinson, 2009), o longo monólogo do personagem ao relatar um surto de incesto e magia em uma ilha deserta, além de perder em certos momentos sua coerência narrativa – afinal, tratava-se de uma história quase que vomitada – , consegue despertar no público um tédio bastante vivo, e um diálogo com o nada conceitual, em busca de um sentido. Na produção “Dot” (Sumo Science, 2010), todavia, esse sentido existencial não achado no curta anterior, é sintetizado aqui em um ponto, incitando-nos a refletir sobre as atuais relações entre tempo e espaço.
As unidades sócio-dogmáticas, bem como suas desilusões para com elas, também geram um mal-estar comportamental. Como exemplificado em “Jesusito de Mi Vida” (Jesus Perez-Miranda, 2009), quando um menino não consegue encontrar na tal “ajuda divina redentora e prometida” a superação para um medo trivial, bobo: o do escuro (temos aí um grande candidato a ateu, explicado pela cena do crucifixo debaixo da cama); em “El Paraiso de Lili” (Melina Leon, 2009), em que Lili, em uma performance a la James Dean mirim, desilude-se precocemente com as corrupções que cercam os sistemas de enlaces políticos; e, encerrando o programa, em “Fear Thy Not” (Sophie Sherman, 2010), uma menina, à mesma velocidade da captação da câmera, canta como uma ultrarromântica uma cantiga de domínio público, à procura, talvez, de uma resposta abstrata e imediata que nem os limites daquele roteiro podem supri-la dessa ânsia.
As variações dos níveis de (in)consciência, independente de que estrato social o indivíduo venha, quando escarradas tem sempre o mesmo objetivo: quebrar as fronteiras do standart. Na Psicanálise, Freud provavelmente denominaria o evento como "exarcebação do id"; no cinema, isso poderia ser chamado de cena marginal, underground.
Brasil 6 - Estamos Todos Juntos
Poliana Dantas
Sinestesias Sentimentais
Será que existe cor para a saudade? Cheiro para a dor? A partir da exibição da Mostra BRA 6 – “Estamos Todos Juntos”, uma das sessões mais emocionantes do Janela até agora, percebe-se que sim, que a vida em coletividade (especialmente a vida familiar, onde há a afloração e o desenvolvimento da afetividade), e os sentimentos e ligações que permeiam esse núcleo podem ser captados sob uma perspectiva penetrante, de modo a levar o espectador a viajar por suas próprias lembranças.
Lembranças simples, e na mesma proporção significantes, como o ato dolorido de se despedir de um ente querido; é o que presenciamos no curta “Ensolarado” (2010), de Ricardo Targino. O próprio título, os tons quentes da fotografia impecável, e até a movimentação da câmera em planosequência em algumas cenas, além de sugerir a imagem de um sertão mais “habitável” como qualquer outro lugar, transmite calor ao desespero e medo que a menina sentia ao ter que se separar de sua família, principalmente da sua avó. E aproveitando o tema avós, todos sabem que temos neles um grande oráculo de boas experiências, as quais eles fazem qustão de disseminar para as gerações posteriores. Mas no curta “Avós” (foto), de Michael Wahrmann, isso funciona de maneira inversa. O garoto Léo, que acabara de completar 10 anos, é o símbolo vivo da necessidade dos seus avós – judeus – de enchê-lo de presentes e comida para compensar as suas dignidades esvaziadas pela Auschwitz.
Mas memórias inesquecíveis nem sempre precisam ser (re)construídas e (re)vividas pelos mais velhos. No curta “Perto de Casa” (Sérgio Borges, 2009), por exemplo, a espontaneidade no momento de diversão de duas crianças transparece um visão livre e mágica do mundo à sua volta, desprovido de qualquer tipo de corrupção; ela apenas está ali, e para eles não dói usá-las e guardá-las.
Já em “Querida Mãe” (2009), a cineasta Patricia Cornils descarrega um profundo intimismo e sensibilidade em sua produção ao reconstruir os passos da mãe que ela nem conheceu a partir de cartas enviadas por esta a seus familiares em Recife. O depoimento de amigos, além da escolha criteriosa de locais importantes na história da mãe, como o próprio Cinema são Luiz – onde curiosamente o curta foi exibido, gerando uma metalinguagem cinematográfica quase sem querer – desperta uma inquietação em todos que assistem a ele, além da sensação nostálgica , mas gostosa, de sentir falta daquilo que não vivemos. Fechando a sessão, vemos em “Balanços e Milkshakes” (Erick Ricco / Fernando Mendes, 2009) um retrato singelo do amor de infância, daqueles que surgem em momentos aparentemente triviais e rotineiros, mas que deixam uma marca profunda na vida de qualquer um.
Existem diversas explicações históricas, filosóficas, científicas para entender o porquê desse constante desejo da humanidade de reemersão memorial, utilizando como principal veículo de escape o cinema; existe, entretanto, uma razão que possa sintetizar qualquer teoria empírica suposta: a de que nunca seremos capazes o suficiente para trabalharmos por completo com todos os sentidos das relações com o outro.
Brasil 8 - Experiências em Coletividade
André Valença
O programa Experiências em Coletividade (Brasil 8) trouxe uma seleção muito condizente com o nome que leva, visto que todos os filmes tiveram alguma correlação com um grupo social. A exibição começou com Novo Ano (2010), de Louise Botkay Courcier e Valérie Pico. O filme é uma busca por pureza e traz imagens leves ou de conteúdo alegre, às vezes meio profanas. Ao fundo, um grupo de pessoas repetindo, como um mantra: “vida, saúde, felicidade”; aspirações comuns de fim de ano.
Ao seguir, Alguém Tem que Honrar essa Derrota! (Leonardo Esteves, 2009) encantou e entreteve o público pela sua não-ortodoxia: o filme foi rodado sem roteiro no Carnaval do Rio de Janeiro e, a partir das imagens que foram obtidas, o diretor construiu uma história na montagem e pôs dublagens por cima das vozes originais. Mas essas excentricidades não foram a única coisa que cativou o público, havia no filme muitas questões que faziam com que o espectador se lembrasse de outras fases do cinema. A dublagem caricata remete às chanchadas brasileiras dos anos sessenta, ou mesmo a enlatados americanos. A música frenética ao fundo, outro elemento crucial do curta, embala uma edição rápida, cheia de informações.
Já A Banda (2010), de Chico Lacerda, apela para uma edição mais discreta. Diversos planos-sequências e outros cortes menores compõem o filme. As imagens captam verdadeiros retratos de pessoas observando uma banda na praia. A atenção do espectador se dobra nelas, pois não há som algum no fundo, nem mesmo o ambiente. A ironia não poderia ser mais clara, um filme (também) sobre som, mas com ausência dele. As imagens, enfim, começam aos poucos a sugerir que se trata de uma festa do movimento gay: bandeiras com o arco-íris aparecem, grupos homossexuais dançam; tem clima de festa. A câmera acaba por captar um instante do trio onde toca uma banda com dançarinos sem camisa. Mas é só. A reação das pessoas é o mais importante.
Handebol (2010), de Anita Rocha da Silveira, segue uma tendência comum no cinema brasileiro, de curta e de longa-metragem, que é o universo adolescente, visto, por exemplo, em As Melhores Coisas do Mundo (Laís Bodanzky, 2010). O filme em questão, contudo, trata o tema de forma distinta, pois não se interessa em fazer registro da adolescência de uma época, mas resgatar no público um sentimento juvenil. A forma que Anita conseguiu de trabalhá-lo assim foi transformando-o numa obra bastante sensorial. O som do filme é esmagador, as imagens parecem uma névoa da lembrança, nada daquilo é natural, ou naturalista, é um tempo vivido e que já foi; há muito tempo (mesmo que se passando na atualidade).
A chave-de-ouro que finalizou a sessão com muito glitter e extravagância foi Faço de Mim o que Quero (Sergio Oliveira e Petrônio Lorena, 2010). O filme começa com a subjetiva de um carrinho de CD pirata rodando o centro do Recife; a impressão que dá é que o filme se tratará de um épico do Brega (principalmente, para quem já sabia da participação de Kelvis Duran, Conde do Brega e João do Morro no elenco), mas logo em seguida fica claro que se trata de uma sucessão de esquetes divertidos ambientados no universo da música Brega. O curta é tecnicamente impecável, a fotografia é preocupada, os atores estão bem preparados e a montagem é inspiradora, contudo, no que sobra em, antiteticamente, profissionalismo e irreverência, falta em substância narrativa. Isto não impede, porém, de o filme cumprir o seu objetivo de registrar uma crônica do gênero musical mais popular do Recife. Há também quem achará uma depreciação, mas, claramente, se trata de um elogio. O maior destaque fica para os créditos, com dançarinos do gênero revelando a ficha técnica do filme desenhada em partes dos seus corpos. “Melhor seqüência de crédito do cinema?”, sugere Kléber Mendonça Filho, realizador, crítico de cinema e diretor artístico do Janela depois da sessão. É bem provável. De fato, uma ótima forma de fechar o programa.
O programa Experiências em Coletividade (Brasil 8) trouxe uma seleção muito condizente com o nome que leva, visto que todos os filmes tiveram alguma correlação com um grupo social. A exibição começou com Novo Ano (2010), de Louise Botkay Courcier e Valérie Pico. O filme é uma busca por pureza e traz imagens leves ou de conteúdo alegre, às vezes meio profanas. Ao fundo, um grupo de pessoas repetindo, como um mantra: “vida, saúde, felicidade”; aspirações comuns de fim de ano.
Ao seguir, Alguém Tem que Honrar essa Derrota! (Leonardo Esteves, 2009) encantou e entreteve o público pela sua não-ortodoxia: o filme foi rodado sem roteiro no Carnaval do Rio de Janeiro e, a partir das imagens que foram obtidas, o diretor construiu uma história na montagem e pôs dublagens por cima das vozes originais. Mas essas excentricidades não foram a única coisa que cativou o público, havia no filme muitas questões que faziam com que o espectador se lembrasse de outras fases do cinema. A dublagem caricata remete às chanchadas brasileiras dos anos sessenta, ou mesmo a enlatados americanos. A música frenética ao fundo, outro elemento crucial do curta, embala uma edição rápida, cheia de informações.
Já A Banda (2010), de Chico Lacerda, apela para uma edição mais discreta. Diversos planos-sequências e outros cortes menores compõem o filme. As imagens captam verdadeiros retratos de pessoas observando uma banda na praia. A atenção do espectador se dobra nelas, pois não há som algum no fundo, nem mesmo o ambiente. A ironia não poderia ser mais clara, um filme (também) sobre som, mas com ausência dele. As imagens, enfim, começam aos poucos a sugerir que se trata de uma festa do movimento gay: bandeiras com o arco-íris aparecem, grupos homossexuais dançam; tem clima de festa. A câmera acaba por captar um instante do trio onde toca uma banda com dançarinos sem camisa. Mas é só. A reação das pessoas é o mais importante.
Handebol (2010), de Anita Rocha da Silveira, segue uma tendência comum no cinema brasileiro, de curta e de longa-metragem, que é o universo adolescente, visto, por exemplo, em As Melhores Coisas do Mundo (Laís Bodanzky, 2010). O filme em questão, contudo, trata o tema de forma distinta, pois não se interessa em fazer registro da adolescência de uma época, mas resgatar no público um sentimento juvenil. A forma que Anita conseguiu de trabalhá-lo assim foi transformando-o numa obra bastante sensorial. O som do filme é esmagador, as imagens parecem uma névoa da lembrança, nada daquilo é natural, ou naturalista, é um tempo vivido e que já foi; há muito tempo (mesmo que se passando na atualidade).
A chave-de-ouro que finalizou a sessão com muito glitter e extravagância foi Faço de Mim o que Quero (Sergio Oliveira e Petrônio Lorena, 2010). O filme começa com a subjetiva de um carrinho de CD pirata rodando o centro do Recife; a impressão que dá é que o filme se tratará de um épico do Brega (principalmente, para quem já sabia da participação de Kelvis Duran, Conde do Brega e João do Morro no elenco), mas logo em seguida fica claro que se trata de uma sucessão de esquetes divertidos ambientados no universo da música Brega. O curta é tecnicamente impecável, a fotografia é preocupada, os atores estão bem preparados e a montagem é inspiradora, contudo, no que sobra em, antiteticamente, profissionalismo e irreverência, falta em substância narrativa. Isto não impede, porém, de o filme cumprir o seu objetivo de registrar uma crônica do gênero musical mais popular do Recife. Há também quem achará uma depreciação, mas, claramente, se trata de um elogio. O maior destaque fica para os créditos, com dançarinos do gênero revelando a ficha técnica do filme desenhada em partes dos seus corpos. “Melhor seqüência de crédito do cinema?”, sugere Kléber Mendonça Filho, realizador, crítico de cinema e diretor artístico do Janela depois da sessão. É bem provável. De fato, uma ótima forma de fechar o programa.
sexta-feira, 19 de novembro de 2010
Brasil 5 - Imagens do Futuro
Ingrid Melo
O futuro é uma máquina chamada cinema
O programa Brasil - 5 Imagens do Futuro, reprisado ontem no cinema da Fundaj, é mais uma prova de que os curtas nacionais estão em nível tão bom quanto os estrangeiros. Dessa vez, a sessão foi completa, ao contrário do que havia ocorrido na exibição do Cinema São Luiz, quando Viagem a Marte, de Antônio Castro, não pode ser exibido por problemas técnicos.
A programação teve início com Pacífico, de Jonathas Andrade, que aborda a Guerra do Pacífico, conflito travado por Bolívia, Chile e Peru no século 19. Entretanto, Andrade confere ênfase especial ao País dos Andes, sua história e geografia. Um terremoto – detalhe para a criatividade do diretor que cria as cenas das placas tectônicas se deformando com modelos de papel em stop-motion, estética que virou moda em nosso cinema, mas que continua impressionando – separa o Chile do resto do continente da América do Sul. Andrade pretende refletir acerca desse isolamento e lança um olhar sobre o próprio Brasil, tão distante da Latino-américa. A câmera em Super-8 confere textura especial ao curta e os depoimentos garantem veracidade. O espectador passa boa parte do filme em dúvida se a história retratada trata-se de ficção ou se é um fato.
Sensação que permanece quando se depara com Wim Wenders em De Volta ao Quarto 666, de Gustavo Spolidoro. No documentário, Spolidoro reacende a discussão acerca do futuro do cinema, proposta por Wenders há cerca de um quarto de século e, à medida que este fala, sobrepõe imagens dos cineastas que deram suas opiniões em 1982. Dessa vez em frente à câmera (digital), o diretor alemão expressa suas certezas e incertezas desse futuro e afirma que a única coisa precisa é que o cinema sobreviverá a todos nós. Vale-se ressaltar à homenagem não premeditada ao grande Michelangelo Antonioni, um dos poucos a vislumbrar o que é o cinema hoje. Um insight muito bom de Spolidoro e um gozo para qualquer amante do cinema que ele o tenha tido.
E se Spolidoro utiliza o passado para falar do futuro, Gabriel Mascaro vale-se do presente em As Aventuras de Paulo Bruskly. O diretor realiza um filme inteiro em machinima (técnica que combina cinema, animação e game), recriando o universo da plataforma de relacionamento virtual Second Life. No enrendo, o avatar do artista Paulo Bruskly encomenda para o cinegrafista homônimo ao diretor um filme em forma de documentário sobre sua experiência no simulador da vida real. No curta, o futuro é representado por uma espécie de ensaio sobre os limites da tecnologia. Há, ainda, espaço para reflexões acerca do cinema e, claro, sobre os usuários de redes sociais e as febres terçãs que elas causam. Uma produção primorosa que mistura ficção e realidade, real e virtual.
E, de fato, essa fluidez marcou boa parte do programa. Em Haruo Ohara - Pausa para a neblina, Rodrigo Grota recria a obra do fotógrafo Haruo Ohara, japonês que morou no Paraná durante um grande trecho de sua vida. Nas reconstruções feitas por Grota das cenas captadas por Ohara, quatro dos nove filhos do fotógrafo participaram. O grande feito do cineasta nesse filme é ter conseguido manter-se fiel à obra do japonês, por si só, tão poética. O curta é de uma beleza comovente e deixa no espectador uma sensação de paz que só os orientais conseguem ostentar. Ponto para Grota, que fechou com chave de ouro sua Trilogia do Esquecimento, composta ainda pelos filmes Satori Uso e Booker Pittman.
Encerrando a noite, o aguardado Viagem a Marte cria uma guerra que apressa o lançamento de uma tripulação a uma viagem espacial rumo ao planeta vermelho. Antônio Castro dá um tom de realidade à obra tão escapista, muito pela escolha do preto e branco. Rumando a Marte, sem saber o que os aguarda, os astronautas são uma metáfora para nossas incertezas acerca do futuro. E, mais do que isso, Castro afirma que tudo pode ser, já que estamos em processo de feitura desse há de vir. Uma bela realização que valeu cada segundo de espera.
O futuro é uma máquina chamada cinema
O programa Brasil - 5 Imagens do Futuro, reprisado ontem no cinema da Fundaj, é mais uma prova de que os curtas nacionais estão em nível tão bom quanto os estrangeiros. Dessa vez, a sessão foi completa, ao contrário do que havia ocorrido na exibição do Cinema São Luiz, quando Viagem a Marte, de Antônio Castro, não pode ser exibido por problemas técnicos.
A programação teve início com Pacífico, de Jonathas Andrade, que aborda a Guerra do Pacífico, conflito travado por Bolívia, Chile e Peru no século 19. Entretanto, Andrade confere ênfase especial ao País dos Andes, sua história e geografia. Um terremoto – detalhe para a criatividade do diretor que cria as cenas das placas tectônicas se deformando com modelos de papel em stop-motion, estética que virou moda em nosso cinema, mas que continua impressionando – separa o Chile do resto do continente da América do Sul. Andrade pretende refletir acerca desse isolamento e lança um olhar sobre o próprio Brasil, tão distante da Latino-américa. A câmera em Super-8 confere textura especial ao curta e os depoimentos garantem veracidade. O espectador passa boa parte do filme em dúvida se a história retratada trata-se de ficção ou se é um fato.
Sensação que permanece quando se depara com Wim Wenders em De Volta ao Quarto 666, de Gustavo Spolidoro. No documentário, Spolidoro reacende a discussão acerca do futuro do cinema, proposta por Wenders há cerca de um quarto de século e, à medida que este fala, sobrepõe imagens dos cineastas que deram suas opiniões em 1982. Dessa vez em frente à câmera (digital), o diretor alemão expressa suas certezas e incertezas desse futuro e afirma que a única coisa precisa é que o cinema sobreviverá a todos nós. Vale-se ressaltar à homenagem não premeditada ao grande Michelangelo Antonioni, um dos poucos a vislumbrar o que é o cinema hoje. Um insight muito bom de Spolidoro e um gozo para qualquer amante do cinema que ele o tenha tido.
E se Spolidoro utiliza o passado para falar do futuro, Gabriel Mascaro vale-se do presente em As Aventuras de Paulo Bruskly. O diretor realiza um filme inteiro em machinima (técnica que combina cinema, animação e game), recriando o universo da plataforma de relacionamento virtual Second Life. No enrendo, o avatar do artista Paulo Bruskly encomenda para o cinegrafista homônimo ao diretor um filme em forma de documentário sobre sua experiência no simulador da vida real. No curta, o futuro é representado por uma espécie de ensaio sobre os limites da tecnologia. Há, ainda, espaço para reflexões acerca do cinema e, claro, sobre os usuários de redes sociais e as febres terçãs que elas causam. Uma produção primorosa que mistura ficção e realidade, real e virtual.
E, de fato, essa fluidez marcou boa parte do programa. Em Haruo Ohara - Pausa para a neblina, Rodrigo Grota recria a obra do fotógrafo Haruo Ohara, japonês que morou no Paraná durante um grande trecho de sua vida. Nas reconstruções feitas por Grota das cenas captadas por Ohara, quatro dos nove filhos do fotógrafo participaram. O grande feito do cineasta nesse filme é ter conseguido manter-se fiel à obra do japonês, por si só, tão poética. O curta é de uma beleza comovente e deixa no espectador uma sensação de paz que só os orientais conseguem ostentar. Ponto para Grota, que fechou com chave de ouro sua Trilogia do Esquecimento, composta ainda pelos filmes Satori Uso e Booker Pittman.
Encerrando a noite, o aguardado Viagem a Marte cria uma guerra que apressa o lançamento de uma tripulação a uma viagem espacial rumo ao planeta vermelho. Antônio Castro dá um tom de realidade à obra tão escapista, muito pela escolha do preto e branco. Rumando a Marte, sem saber o que os aguarda, os astronautas são uma metáfora para nossas incertezas acerca do futuro. E, mais do que isso, Castro afirma que tudo pode ser, já que estamos em processo de feitura desse há de vir. Uma bela realização que valeu cada segundo de espera.
Internacional 4 - As Imagens Projetadas
André Valença
As Imagens Projetadas
A memória - em todas as suas manifestações – tem sido tema recorrente nesta edição do Janela Internacional de Cinema. No programa As Imagens Projetadas (Internacional 4), este assunto é retrabalhado em pelo menos dois filmes. De maneira mais óbvia, ele aparece em Amnésia (Cornelia Swann, Rússia, 2009). Uma narradora amnésica paradoxalmente relembra trechos de sua vida que haviam sido perdidos. A moça sempre diz acordar e se encontrar vivendo uma vida diferente. Numa delas, é esposa de Pierce Brosnan, noutra, de William Shatner, e assim por diante. As identidades afamadas dos maridos não parecem interferir significativamente na sua conduta, afinal – ela sabe – o cérebro falha.
Em Vida Longa à Nova Carne (Nicolas Provost, Bélgica 2009), a memória presente é a do cinema de terror. O filme de montagem traz diversos trechos de clássicos do gênero, de Iluminado (1980), de Stanley Kubrick, a Alien (1979), de Ridley Scott. A edição, entretanto, traz um "poŕem". As imagens estão contaminadas com um erro de leitura de imagem que acontece na má compressão do arquivo de vídeo no computador. Quando há movimento, a imagem fica repleta de pixels e com erro de cores que torna as cenas numa verdadeira salada de frutas imagética; o resultado, finalmente, é um literal amálgama dos diversos filmes. Não só eles estão unidos pela história que foi montada, mas pelo defeito do computador. Enfim, essa mistureba de cores, pixels e imagens gera peças que podem evocar desde uma tela abstrata, ao expressionismo de Munch. Certamente, "Vida Longa..." é o destaque da sessão.
Outro curta que abusou da criatividade foi Não Filme em Três Actos e Um Prelúdio (foto) (Portugal, 2010), o primeiro a ser exibido. O filme de Rita Macedo é um balaio filosófico sobre questões essenciais, como a morte. O texto e extremamente inteligente, mas as inovações estéticas às vezes atrapalham a sua maior compreensão. O próprio filme tem ciência disso e brinca, abafando um discurso sério de uma mulher com uma voz gritando onomatopéias. Na verdade, tudo isso deixa "Não Filme..." ainda mais interessante e desafiador. É, certamente, mais um bom fruto do cinema português, que, recentemente, vem nos agraciando tanto, principalmente com as obras realizadas pela produtora O Som e A Fúria.
Outro que agradou, pela ternura e comicidade, foi Masala Mama (Michael Kam, Singapura, 2010). O filme sobre a amizade (ou "aliança", para usar um termo mais super-heróico) improvável entre um vendedor homossexual e uma criança aficcionada por quadrinhos de super-heróis toca e diverte o público com um final bastante alegórico. Por fim, Procuro Garota Para Trabalho Remunerado em Curta-Metragem (Manuel Schapira, França, 2010), mesmo sendo bom e consistente, decepciona por seu título nos levar a crer que se trata de um exercício metalinguístico, quando, na verdade, é uma história das mais tradicionais sobre uma aspirante a atriz.
quinta-feira, 18 de novembro de 2010
Brasil 4 - Fazendo Contato
Yuri Assis
Fazendo Contato, quarto bloco brasileiro de curtas do Janela, exibido na quarta-feira(17), abordou a relação com o outro, que nem sempre é descomplicada. A descoberta da alteridade às vezes revolve assuntos que foram empurrados pro fundo da gaveta. No fim das contas, a interação com o alheio parece remeter a nós mesmos.
O curta-documentário Canoa Quebrada (Guile Martins, 2009), por exemplo. O diretor põe na tela, sem dramas, o momento em que conhece o pai. Protagonista de seu próprio enredo, Guile consegue a façanha de expor um olhar cru sobre seu passado. Como alguém que se acostumou à falta de um braço, a busca pela figura paterna é mais curiosidade que carência. O cineasta achou os contatos do pai na rede virtual; fruto do acaso, seu guia é a sorte.
Náufragos (foto)(Gabriela Amaral e Matheus Rocha, 2010) segue com essa tendência, mas em outra direção. Recheado de metáforas, o enredo mostra Odete, senhora idosa, que se dá conta da viuvez quando o marido, ao procurar certo objeto embaixo da cama, desaparece. Ruídos estranhos indicam que ali ocorre algo, e, ao final, o burburinho traz à tona lembranças empoeiradas. É como se o esposo tivesse passado para esse terreno fantasmagórico de ressentimentos. Longe, entretanto, de imprimir um ar pesado ao tema, o curta baiano toca no assunto da morte com certo humor. Odete aceita a condição que acomete a todos, sumindo para debaixo do leito.
A relação entre mortos e vivos também entra em cena em As Corujas (Fred Benevides, 2009). Adaptação do conto homônimo do cearense Moreira Campos, o espectador é levado a um velho necrotério. Lá, um vigia espanta as corujas que bicam e arrancam os olhos dos defuntos, como se ainda precisassem ver. Guardando as necessidades alheias, o personagem nutre uma ligação afetiva de mão única.
A esse tipo de contato, marcado pela dependência, Carreto (Marília Hughes e Cláudio Marques, 2009) acrescenta a circunstância da troca. Duas crianças se unem para superar os impasses que não lhes permitem viver plenamente a infância. O menino tem obrigações com a realidade; a menina, paraplégica, está confinada ao mundo de suas fantasias. Na tentativa de resolver a situação de sua amiga, converte em brinquedo o carrinho-de-mão com que trabalha.
O Mundo é Belo (Luiz Pretti, 2010) encerra o programa retomando a velha temática do entendimento. O diretor tenta falar de suas contemplações, confiante da compreensão de seu interlocutor. Aí, pinta uma dúvida, certamente partilhada por muitos espectadores, e que perpassa as nuances do Fazendo Contato: a gente sempre tem mesmo que se traduzir?
Internacional 3 - Fazer Backup
Ingrid Melo
Oroboro
O filósofo Friedrich Nietzsche formulou certa vez uma teoria a que denominou "O Eterno Retorno". Em um dos seus aspectos, ela fala sobre os ciclos repetitivos da vida. E são exatamente esses ciclos que são abordados no Programa Internacional 3 - Fazer Backup, exibido ontem no Cinema da Fundação, como parte da III Janela Internacional de Cinema do Recife.
Para começar, uma das consequências mais marcantes da teoria do Eterno Retorno está presente no argentino "Cynthia ainda tem as chaves", de Gonzalo Tobal. Segundo Nietzche, estamos destinados a amar o inevitável, o amor e o desamor - o amor fati. E é isso que faz Cynthia, voltando todos os dias à casa do namorado após o fim do romance. Ela, que amou tanto estar naquela casa quando era cercada de afeto, ama ainda mais agora em que a frequenta sozinha. O filme é belo por essa necessidade desesperada de Cynthia de resgate ao amor impossível e por sua anulação em nome do desamor que restou naquele ambiente. A atriz Maria Villar ganha mais pontos por seu carisma do que por sua interpretação. Ela é daquelas atrizes que enfeitiçam a câmera e, consequentemente, o público.
Já aqueles que gostam dos irônicos nomes fictícios de filmes têm em "French Courvoisier" da francesa Valérie Mréjen uma boa pedida para a piada. Isso porque o filme é exatamante a volta de quem não foi. A história de sete amigos que se reúnem para lembrar um oitavo que havia se suicidado consegue ser densa e leve ao mesmo tempo. E isso acontece graças aos seu diálogos muito bem pensados, que mesclam assuntos cotidianos e filosóficos de maneira precisa. Destaque para o olhar de Valérie, que está sempre captando a expressão certa no momento exato. Pode-se perceber claramente a atmosfera de uma intimidade perdida, antes justificada pela presença do amigo morto; bem como o quanto esse amigo ainda é marcante nas vidas das personagens. Sem dúvidas, o destaque da noite.
O inglês "Tad's Nest"(foto), de Petra Freeman, por sua vez, é o regresso à infância. A diretora, quando criança, fantasiava um ninho de enguias mágicas perto de onde morava e busca, com o filme, fazer o resgate da lembrança infantil. Por isso, o curta tem ares de conto-de-fada, com direito até a mocinha em perigo. Entretanto, Freeman não conseguiu deixar de lado suas impressões de adulta e carregou de intensidade a história, o que acaba deixando o espectador incomodado. A menina que está sempre sendo perseguida dá margem para muitas metáforas para nossas mentes já fatigadas e a sensação de desconforto é insistente. Tudo muito bem realizado em animação de pintura sobre vidro.
Fechando a noite, foi exibido "Apenas para fins culturais", de Sarah Wood. O filme traz imagens da Atlântida palestina: seu acervo de filmes perdidos durante o Cerco a Beirute. É o retorno à história, à cultura e à arte da região, através de imagens e desenhos que as representam. Contudo, o resgate que Sarah pretende conseguir parece não se restringir à Palestina. Ela busca um resgate acerca da relevância do cinema para construção da identidade de um povo. E por isso chamei de Atlândida o acervo. Porque sendo um registro tão característico de uma população, o cinema não se pode perder sob as águas - ou bombas.
Internacional 6 - Caro Diário
Thaís Vidal
Um programa muito sensível e que suscita profundas reflexões é o Caro Diário, exibido ontem no Cinema São Luiz. Abrindo a seção, Blokes, um filme chileno que narra a descoberta da sexualidade. De maneira sutil e delicada, a diretora Marialy Rivas mostra um menino, Luchito, que se vê apaixonado pelo seu vizinho, Manuel, e não consegue disfarçar. Os detalhes de sua sexualidade em descoberta deixam o filme mais profundo a cada cena, pois Luchito simplesmente admira Manuel e se vê entregue a um sentimento do qual não pode falar, principalmente num contexto político de Santiago do Chile em 1986, sob a ditadura de Pinochet. A cena em que os dois trocam sinais pela luz e Manuel se masturba para o outro é crucial para analisar a completa descoberta, de rapazes que se encontram no mesmo desejo.
No curta espanhol Androides (foto), de María Pérez, o encontro não é sexual, como em Blokes, mas de amizade, dois jovens solitários e excluídos por suas existências, um garoto homossexual, de cabelo vermelho – lembrando David Bowie no álbum Aladdin Sane de 1973 – e uma garota deficiente física se encontram num objetivo comum de fazer contato com alienígenas. O que a princípio é apenas um desejo juvenil utópico, se mostra mais do que isso, é um desejo de se encontrar, de se sentir parte de algo, já que a sociedade, demonstrada principalmente pelos pais do garoto, Simon, é excludente e preconceituosa. Na narrativa, há diversas cenas que mostram os contrastes entre Simon e seu irmão, que o diminui, como a primeira em que o garoto faz xixi sentado e o irmão entra no banheiro xingando-o. Os amigos não procuram de fato alienígenas, eles procuram espaço, procuram compreensão e identificação, porque para a sociedade eles já são os alienígenas.
No francês Dans nos veines, de Guillaume Senez, a história é outra, a relação entre pai e filho, diante de uma precoce gravidez. O menino Lionel de 17 anos precisa assumir uma posição de pai, pois sua namorada está grávida, mas a presença do seu pai e a postura dele diante da criação dele e de seu irmão lhe fazem negar a paternidade, pois ele não sabe o que é ser pai, e sua referência é negativa e ele não a quer transpor de maneira alguma. Durante o filme, se pode observar um menino que precisa deixar de ser menino para assumir responsabilidades, mas não consegue, ainda joga Playstation, ainda briga com o irmão mais novo, ainda faz farras e chega em casa levado pela polícia. Esse menino não pode ser pai, mas precisa encontrar o pai que terá que ser dentro de si. A cena final em que diz para a namorada: "pegue-o de volta, eu não quero machucá-lo" diz muito sobre sua relação com seu pai, e o pai que pretende ser.
Fechando o programa, e falando de jovens pais e filhos, o francês En suspension, de Fanny dal Magro, narrando a luta de uma jovem mãe para criar sua filha, atendendo aos seus desejos e impondo autoridade. É uma história sobre a dificuldade da mãe solteira que precisa de emprego, de estrutura, mas também de amor. No filme, a menina Manon muitas vezes não entende a mãe e cobra dela diversas coisas. Ao mesmo tempo, a mãe quer prover a filha, mas se vê presa às suas condições. Há uma cena muito bonita e delicada que representa o sentido do filme, que é o amor maternal, mãe e filha estão na praia e a menina não quer ir pro mar, a mãe vai sem dizer nada, mergulha e desaparece. O olhar vazio da filha nesse momento deixa o espectador em suspensão, mas a mãe retorna e a filha corresponde ao carinho que só a mãe pode lhe dar.
Brasil 4 - Fazendo Contato
Nathalia Pereira
Cinco curtas compõem o bloco de filmes brasileiros Fazendo Contato, que estreou na última quarta-feira (17), no São Luiz. A necessidade do encontro e de busca por respostas, pela alegria e pela beleza foi tocada nesse programa, aberto por Canoa Quebrada (2009), de Guile Martins.
O filme é essencialmente pessoal, porque expõe momentos de intimidade do próprio diretor na viagem que ele fez para encontrar o pai desconhecido. A princípio, o público acompanha a conversa de Guile com o avô, explicando que o pai teria se tornado pastor evangélico, e, a partir dessa cena, se constrói a imagem de como a paternidade teria sido algo vago na história do cineasta.
Depois, as imagens de Guile, trancado num quarto de hotel antes do encontro com o pastor, mostram certos rituais de incorporação e de união de forças para o encontro. A presença da câmera nesse momento - extremamente íntimo - é interessante, pois a atuação diante dela é inevitável. Ele sabe que não está só a partir do momento em que a câmera é ligada e, talvez por isso, não tenha tido coragem de filmar o encontro com o pai. A falta de imagens desse contato acabou por fazer sentido, pois a figura paterna ali era algo bastante incompleto.
O baiano Náufragos (Gabriela Amaral e Matheus Rocha, 2010) também fala sobre ausência. Nele, Odete (Haydil Linhares) é uma velhinha que vive solitária em um apartamento antigo e sofre com a saudade do marido. Por causa de tanta falta, ela chega a vê-lo por um momento e, quando ele desaparece, se convence a pescá-lo embaixo da cama. O que consegue, entretanto, é resgatar um baú de recordações. Esse contato com as memórias emociona pela sinceridade transmitida por Haydil, e é um dos momentos mais belos do filme. No debate posterior à sessão, Gabriela Amaral explicou que a alma do curta, para os realizadores, está na contraposição entre o peso dos significados da morte e a leveza de sua inevitabilidade. A exibição de Náufragos no Janela não deixa de ser uma homenagem a Haydil Linhares, que faleceu antes de vê-lo pronto.
Outro curta do programa que se baseia na simplicidade é o também baiano Carreto (foto) (Marília Hughes e Cláudio Marques, 2009). Duas crianças se tornam amigas e um suaviza a necessidade – física ou afetiva – do outro. A história narrada antes da visão do filme não é nada inédita, mas a maneira como as cenas são construídas cativam o espectador pela grande força afetiva expressada pelos gestos dos meninos, mais do que por suas poucas palavras.
O que destoa dos ares de leveza presentes nos filmes da sessão é o cearense As Corujas (Fred Benevides, 2009). A começar pelo verde sombrio que permanece na tela até o fim do curta, adaptação do conto homônimo de Moreira Campos. A atmosfera macabra envolve um homem que se dedica obsessivamente a proteger os mortos das corujas, que lhes arrancariam os olhos. Benevides se apóia no suspense para prender a atenção do público, e os movimentos da câmera passam a impressão de que o espectador está presente no lugar.
A sessão termina após O mundo é belo (2010), que é o resultado de uma experiência com sentimentos bastante subjetivos, vividos pelo diretor, Luiz Pretti. A mensagem de seria melhor se encarássemos a rotina com mais tranqüilidade pode ter sido passada, mas a empolgação sentida pelo diretor ao filmar o céu não parece ter cativado tanto os espectadores.
Brasil 4 – Fazendo Contato
Márcio M. Andrade
Estabelecer contato prescinde de disposição de um para relacionar-se com algo ou alguém externo a ele, seja concreto ou sobrenatural. O programa 4 da Mostra Competitiva Nacional mostra a fluência dos diversos tipos de comunicação que pode se estabelecer com esse exterior.
Iniciando este ciclo, Canoa Quebrada (foto) (Guile Martins, 2009) traz o diretor em uma jornada em busca de seu pai, a quem nunca conheceu: a saída de casa, a viagem, a preparação do corpo e da alma no hotel. No momento-chave do longa – o primeiro encontro –, não ocorre uma epifania melodramática, mas uma evanescência natural diante do que o espectador (não) vê: o contato se realiza através da voz, emergindo essa figura paterna somente na imaginação. De maneira habilidosa, o diretor constrói um universo masculino destituído do ranço pelo abandono, mas com desprendimento com a possível seriedade que esta questão normalmente requer.
Em contrapartida ao anterior, o curta Carreto (Marília Hughes e Cláudio Marques, 2009) propõe um contato através de imagens e não de sons: Tinho trabalha carregando frutas num carrinho de mão e conhece outra criança que, mesmo deficiente, vive a infância que ele não experimenta. Utilizando desenhos, gestos e olhares, o diretor emociona o público com um painel delicado de afeição e confiança que se firma com uma redenção extremamente sutil, e não por algum deus ex machina milagroso.
De relacionamentos concretos, parte-se para contatos fundamentados no desconhecido: As Corujas (Fred Benevides, 2009) - baseia-se na literatura de Moreira de Campos para mostrar um homem que, meticulosamente, afasta as corujas do necrotério em que trabalha. Com essa base, o melodrama manifesta-se gradativa e intensamente através da confluência quase mágica de enredo, interpretações, enquadramentos, trilha e efeitos sonoros, fotografia. Todos esses elementos constroem uma ambientação lúgubre que inebria e atenta o espectador para qualquer impressão de mudança, da maneira mais inesperada possível.
Náufragos (Gabriela Amaral Almeida e Matheus Rocha, 2010), por sua vez, trata da morte de maneira alegórica e até divertida: Dona Odete tenta de todas as formas reencontrar o esposo que sumiu. Protagonista e diretora compõem um quadro elegante – com imagens ao mesmo tempo ternas e absurdas - onde real e sobrenatural não se excluem, mas se influenciam. Enquanto esmaece ao encontro do seu marido, somente a memória de Dona Odete proporcionará ao público sua eternidade, ao contrário daqueles que se perpetuam através da imagem.
Finalizando este ciclo, O Mundo é Belo (Luiz Pretti, 2010) privilegia a mescla do concreto com o sobrenatural em um universo transcendental: nosso mundo. O tempo parece se dilatar diante dessa presença quase divina através de imagens e sons que traduzem a sensação de abrir os braços diante do eterno e do fugaz.
Externo / Interno. Concreto / Sobrenatural. Conceitos que se fundem na construção de uma emoção / reflexão sincera sobre nossas formas de relacionamento com pessoas e obras como estas ou através delas.
Brasil - Quanto vale um rosto
Thaís Vidal
"É tão bom ver a cara das pessoas numa tela de cinema, filmadas com tanto interesse". Essa é a descrição mais precisa para o programa Quanto vale um rosto, que reuniu Ensaio de Cinema , de Allan Ribeiro (RJ, 2009), Cynthia, de Marcelo Toledo e Paolo Gregori (SP, 2010) e Permanências , de Ricardo Alves Junior (MG, 2010). A primeira exibição do bloco aconteceu ontem, no Cinema São Luiz.
Em Ensaio de Cinema (foto), a feitura de uma saia é elemento de coesão entre dois homens a quem a janela é um mundo fora deles e a quem as referências ao cinema mundial fazem construir uma obra em que a câmera devagar vai buscar Barbot, um corpo que dança, e se liberta. Dois homens, já mais velhos, ensaiam um filme, ao qual nomeiam Dança de Barbot, como referência a Dança dos Vampiros de Roman Polanski (Inglaterra, 1967). Por ser ensaio, não há câmera, mas sim uma interpretação de sua existência, acompanhada pela batida de orixás que é suporte para a interpretação do dançante. É um filme do ensaio de um filme, a busca da profundidade que há além do corpo, dos gestos, unidos ao que se pensa e se diz do movimento, uma profundidade existente além da janela que vê de Santa Tereza o Rio de Janeiro.
Com Cynthia, Toledo e Gregori trazem a história de uma moça que se diz "dançarina por paixão e manicure por conveniência" e que precisa desperdiçar seu desejo com homens que pagam pelos seus serviços. De dia, manicure, e à noite dançarina numa casa noturna. É interessante ver as olheiras da manicure contrastando com a beleza do rosto e do corpo que dança e atrai olhares masculinos. Um filme sobre um mundo não tão marginal da prostituição, mas também secreto, também sofrido, e que aniquila sonhos. Em uma narrativa leve, o filme mostra a dupla vida e tenta mostrar a busca pelo sonho, que na verdade, termina por não ficar muito clara na narrativa, mas que pode ser percebida se o espectador debruçar um olhar reflexivo sobre as imagens e as falas da moça.
Finalizando a seção, um filme que não poderia ter outro nome, Permanências. Na narrativa, tudo permanece, a câmera no mesmo plano por minutos, as pessoas que vivem num velho edifício, os desgastes, as lembranças, os vícios. O que não permanece é o tempo, ele passa e carrega consigo a juventude, as companhias. Olhar cada personagem naquele filme é refletir sobre suas existências e relações com um espaço físico deteriorado, que como afirmou o diretor, é um edifício que existe no centro de Belo Horizonte há trinta anos e representa uma falência do modernismo. Apesar de trazer uma reflexão sobre certo constrangimento do próprio silêncio, ela não é tão clara à primeira vista, e o filme pode enfadar porque os planos demoram mais que o necessário. Em algumas cenas, o espectador praticamente fuma um cigarro inteiro com o personagem e isso pode até ter sentido, mas não fica claro.
quarta-feira, 17 de novembro de 2010
Internacional 3 – Fazer Backup
Nathalia Pereira
"O que a memória ama, fica eterno" - Adélia Prado
O terceiro programa internacional do Janela, Fazer Backup, foi exibido ontem (terça-feira, 16) no São Luiz. O tema que costura os quatro curtas do bloco é o apelo às lembranças como exercício de autoconhecimento. A seleção permite um diálogo muito bem pensado entre os curtas, que talvez possa ter sido prejudicado pela má projeção das legendas em português.
Abrindo a sessão, Ted’s Nest (Petra Freeman, 2009) é um filme que gera certa agitação no espectador. É como um devaneio, pois existe uma aura de conto de fadas macabro, tudo muito fluido: estética e narrativa. Sua arte é resultado da técnica de desenhar em vidro, maturada por Freeman, e os traços dos cenários são como uma assinatura da autora. A diretora inglesa carregou muito de si ao projeto, que revisita seu imaginário de criança, quando fantasiava que havia um ninho de enguias mágicas perto de onde morava. Um olhar pra trás nos sonhos, ainda presentes.
O segundo curta do programa, Cynthia Ainda Tem as Chaves (Gonzalo Tobal, 2010), apóia-se no monólogo de uma mulher arruinada após o fim de um relacionamento. Como não consegue seguir em frente sozinha, Cynthia (Maria Villar) passa a sobreviver apenas pelos momentos que permanece escondida no apartamento do homem que ainda ama. O exercício de auto-anulação é refletido pela protagonista quando diz que é preciso muito cuidado para apagar seus rastros do apartamento, ela vive como um parasita da "presença" do outro. A atuação de Villar é um dos pontos fortes do curta, a atriz transmite uma expressão serena a uma alma desesperada, o que faz com que a personagem ganhe ares de loucura contida.
French Courvoisier (Valérie Mréjen, 2009) (foto) vale o destaque da sessão pela sutileza com que retrata alguns amigos, fisicamente, em torno e uma mesa de jantar e, sentimentalmente, habitando a memória de uma pessoa que já morreu. Após a refeição, todos os assuntos retomam a lembrança do amigo perdido, e as coisas que são ditas provocam sorrisos, constrangimento, tristeza e saudade. A câmera capta a solidão pertencente aos membros da mesa, que parecem ter seguido caminhos diferentes, após a morte do amigo. A lembrança da pessoa ausente é o laço mais forte entre eles, o morto é o mais presente da mesa.
Para fechar o programa, uma sensível proposta de resgate artístico e histórico. A intenção de Apenas Para Fins Culturais (Sarah Wood, 2009) é a de registrar, fazendo uso de depoimentos e ilustrações, o que foi perdido do antigo acervo palestino de filmes. O principal questionamento do filme fica explícito logo no início: "Como seria nunca ter visto uma imagem do lugar de onde você é?”. A lembrança dessas imagens se torna especial, pois agrega às características iniciais de cada obra, as particularidades de quem não a esqueceu.
Brasil 03 – Quanto Vale um Rosto
Márcio M. Andrade
Mensurar um valor específico para se pagar para usar ou simplesmente observar um corpo pode ser considerado tarefa ingrata, mas algo que certamente temos feito com mais freqüência do que imaginamos, como demonstra o Programa 03 desta Mostra Competitiva Nacional.
Iniciando com o curta Ensaio de Cinema (Allan Ribeiro, 2009), um cotidiano caseiro de dois homens toma fôlego e êxtase quando a criação cinematográfica toma conta daquele ambiente, onde um se permite ser "filmado" e outro vasculha a imagem do outro em um ensaio caloroso em imagens e sensações. Uma bela fotografia que torna estes dois personagens quase palpáveis diante da tela, assim como diálogos que privilegiam a naturalidade de um amor desmedido pelo cinema - com referências a mestres como Antonioni, Bertolucci e Loach.
Em contrapartida, encontra-se em Cynthia (foto) (Marcelo Toledo e Paolo Gregori, 2010) a sucessão dos dias de uma mulher obrigada a estipular um preço para seu próprio corpo, trabalhando como manicure e garota de programa a fim de estudar dança no Japão. Belos ângulos e interpretações naturalistas bem compostas fazem deste curta um retrato doloroso e dramático de um cotidiano que aprisiona e parece cegar aqueles que nele se estagnam, mesmo possuindo o desejo de ir embora. Ao final do curta, em uma cena singular, Cynthia, com seu corpo pintado de branco e usando peruca verde, realiza uma performance para o espectador, demonstrando toda a dor de ser considerada mercadoria barata, objeto sexual. O espectador, então, se surpreende chorando por uma mulher igual a tantas outras, mas que se decompõe diante dele, como um pedido de misericórdia.
Finalizando o programa, Permanências (Ricardo Alves Junior, 2010) propõe estabelecer relações de semelhança entre as paredes desgastadas de um prédio em Minas Gerais e os rostos degradados de seus habitantes, mas, com o desenvolver do curta, um novo elemento torna-se chave para este relacionamento: a câmera. Considerada intrusa naquele meio, ela parece constranger o olhar de seus objetos de afeto, por parecer "impiedosa" no seu registro de todos os detalhes que percebe. Enquanto os personagens ocultam seus olhares da análise – talvez fria, talvez emocionada – do espectador, este também se constrange de ter pago um ingresso por uma expressão cujo valor é impossível limitar ou definir.
Com estes três excelentes trabalhos, o programa Quanto Vale um Rosto encerra uma mostra que se equilibra entre o êxtase e a reflexão, que dilui emocionalmente seu espectador tão anestesiado pelo consumismo e culto corporal do dia-a-dia.
Internacional 3 - Fazer Backup
André Valença
Rememorando, relendo
O programa Internacional 2 (ou Fazer Backup) exibiu quatro filmes bem distintos esteticamente, mas que mantinham certa coesão temática. A seleção variou entre estilos mais surreais e outros mais "palpáveis". A sessão teve início com Tad’s Nest (Petra Freeman, Inglaterra, 2010). Tad’s Nest, diz a sinopse, "é onde as enguias se tornam adultas antes de serem chamadas a voltar usando apenas e memória das sensações para guiá-las". O filme, bela animação feita em pintura sobre vidro, sugere uma revisitação da memória através da metáfora do desenvolvimento das enguias. A impressão que pode ficar, entretanto, é de um ensaio darwiniano, pois as criaturas humanóides de Tad’s Nest sempre se deparam com outras maiores, por quem estão sendo sempre engolidas, física ou metaforicamente.
O segundo curta exibido se chama Cynthia Ainda Tem as Chaves (Gonzalo Tobal, Argentina, 2010) e prova que a Argentina continua produzindo um cinema se não bom, regular. O filme segue a mente desvairada de Cynthia, que ainda guarda consigo a chave para a casa de seu ex-namorado, por quem continua apaixonada. Ela visita sua residência todos os dias a fim de sentir sua presença. Com um roteiro bem desenvolvido, pensando em todos os desdobramentos que o argumento pode sugerir, o filme talha o resultado sombrio do fim de uma relação e a paranóia humana de necessitar ser amado. A atriz Maria Villar fica na corda bamba, mas, por fim, consegue atender à expectativa do papel.
Subindo na escala de "palpabilidade", chegamos ao sóbrio French Courvoisier (Valéria Mréjen, França, 2009). O texto inteligente e elegante, que lembraria um Woody Allen melancólico, descreve um grupo de amigos à mesa de jantar que relembra um amigo. A conversa progride naturalmente nas bocas de um elenco jovem e muito bem integrado. As informações das entrelinhas são tão bem estruturadas (mas também sutis), que qualquer espectador capta os sentidos mais obscuros. French Courvoisier é um filme capaz de ser apreciado por todos; um pequeno drama sem melodramas.
Apenas Para Fins Culturais (foto) (Sarah Wood, UK, 2009) encerra a seleção com uma reflexão inerente à modernidade: "numa época dominada pela imagem em movimento, como seria nunca ter visto uma imagem do lugar de onde você é?". A partir daí, Sarah Wood destrincha a relevância do cinema para a cultura de um povo quando faz resenhas sobre – e desenhos representativos de – filmes etnográficos palestinos. Muitos deles, pertencentes ao acervo de filmes da Palestina, se perderam durante o Cerco de Beirute, uma investida israelita no Líbano. O filme não só tem a função de rememorar essas obras, como o título da seleção (Fazer Backup) sugere, mas também fazer-lhe uma releitura.
Brasil 5 - Imagens do Futuro
André Valença
O Brasil lá de fora e o lá de fora daqui
A provável unidade da seleção de curtas-metragens Brasil 5 (ou Imagens do Futuro) se deu, curioso e paradoxalmente, à sua internacionalização (ou universalização, se convir mais). Infelizmente, apenas quatro filmes e meio foram exibidos na sessão realizada no São Luiz. Enquanto todos os outros filmes tiveram uma projeção bem sucedida, o curta de Antônio Castro, Viagem a Marte (2010), foi interrompido no meio por problemas técnicos. Possivelmente, o filme viria a reforçar uma das melhores seleções brasileiras até agora exibidas.
A sessão começou com o retalhado Pacífico (Jonathas Andrade, 2010). Cenas em stop-motion com modelos de papel revelam formações rochosas sendo formadas (ou deformadas?), rios alterando espaços, ventos soprando sobre o planeta, tudo numa rapidez que deixa na dúvida se se tratam das alterações naturais da Terra em alta velocidade, ou de alguma calamidade natural. Em seguida, passamos os olhos pela história do Chile, os tormentos e êxitos de um país historicamente perturbado. Essas conquistas e retrocessos são o caminho natural da humanidade, ou a intervenção humana compromete um curso mais fluente? "Estamos acostumados ao sismo, mas não ao terremoto", a voz de uma chilena declara em off. Descobrimos através desta e de outras que o filme trata da ressaca do terremoto que ocorreu no Chile. Só do terremoto?
Em seguida, um filme necessário. De Volta ao Quarto 666 (Gustavo Spolidoro, 2010) põe Wim Wenders no quarto onde ele gravou Quarto 666 (1982), documentário onde, cada um por vez, vários diretores de cinema do mundo são postos no tal quarto de hotel, em Cannes, para responder à pergunta: "qual o futuro do cinema?". Algumas respostas "apocalíticas" demonstravam um temor do fim do cinema. Contudo, tais hipóteses se tornaram infundadas, como Wenders tenta explicar, enquanto sobreposições de imagens do filme de 1982 dialogam com seu discurso.
E então, entra mais uma inovação de Gabriel Mascaro. O diretor pernambucano de Um Lugar ao Sol (2009) e Avenida Brasília Formosa (2010) concebeu As Aventuras de Paulo Bruscky (2009) (foto), um filme realizado inteiramente no Second Life, plataforma mundialmente conhecida de relacionamento virtual constituída por avatares dos internautas, que passeiam por uma versão onírica do mundo pragmático. No filme, um "cinegrafista" de eventos do Second Life chamado (também) Gabriel Mascaro e o artista Paulo Bruscky gravam um suposto documentário no jogo. O filme não só está repleto de uma metalinguagem um tanto particular, como também abre as portas para uma concepção muito mais "real" do mundo virtual.
O último filme a ser exibido por completo foi o Haruo Ohara (Rodrigo Grota, 2010). Nada como uma fotografia suave e bem composta – realizada em digital, não se surpreendam! – para fazer jus às fotos tiradas por Haruo Ohara, fotógrafo japonês que morou dezenas de anos numa área rural do Paraná. O filme não se trata, contudo, de um documentário, mas de uma reconstrução com atores dos momentos quando as fotos foram tiradas. A sensibilidade estética e o respeito pelo artista permeiam essa obra deslumbrante.
terça-feira, 16 de novembro de 2010
Brasil - Guiados por Vozes
Thais Vidal
O cinema nacional entrou em cena mais uma vez ontem com quatro curtas no programa Guiados por vozes. Abrindo a seção, o carioca Áurea, de Zeca Ferreira, que traz um panorama sensível sobre músicos da noite, numa espécie de docu-ficção contando a história de Áurea Martins, cantora de casas noturnas do Rio de Janeiro. A partir de depoimentos dela e de alguns companheiros intercalados com cenas da noite e diálogos criados, o diretor traça uma visão triste de quem vive de música, mas não é realmente reconhecido.
Dando continuidade à temática, mas não escapando de uma visão comum, presente no cinema brasileiro, de meninos negros da favela, o também carioca Raz, de André Lavaquial, traz à cena o rap e contextualiza a música como ponte para um transe espiritual. O filme não parece trazer nada de novo, mas o interessante é a transposição da ideia do diretor, originalmente de um episódio em Paris, para as ruas do Rio de Janeiro, com personagens e vivências do Brasil.
Em Ave Maria ou mãe dos sertanejos (foto), a estética e a temática não seguem a linha anterior. Com o filme baseado na montagem de imagens do sertão, e em cortes de cenas que não apresentam uma linearidade, o pernambucano Camilo Cavalcante, sugere a ideia de que a religião é a força do sertanejo. Apesar da belíssima fotografia do filme, a ligação entre as imagens não é linear, e o espectador pode deparar-se com uma série de imagens, representações de lugares-comuns do Sertão, que são estereotipados em cenas que remetem a uma ideia padrão da vida do sertanejo.
O filme que fechou a noite foi A amiga americana, de Ivo Lopes e Ricardo Pretti, que é leve, engraçado, mas que não encanta muito. A linha de raciocínio do filme vai da chegada de uma californiana, que se chama Paris, a Fortaleza ao desenvolvimento de uma amizade. Entretanto, a temática da amizade é tratada muito superficialmente, e algumas falhas como o fato de uma americana e uma brasileira se entenderem mesmo sem falarem a mesma língua, deixam o filme estranho.
Apesar de esse aspecto soar como intencional para sugerir que o entendimento entre duas pessoas é mais que a linguagem, o mecanismo não foi bem aplicado, porque em alguns momentos parece que elas sabem o que a outra fala, mesmo que uma só fale português e a outra inglês. Mas o final é o ponto que de fato destoa da linha, pois a cearense Thais parece só despertar dois anos depois para a partida de Paris, e demonstra isso tocando De repente, Califórnia de Lulu Santos: nada surpreendente.
Brasil 06 - Estamos Todos Juntos
Márcio M. Andrade
Refletindo sobre laços familiares feitos ou desfeitos, o programa incluiu curtas que empregavam diversas técnicas a fim de trazer à tona sentimentos como saudade, compreensão e até humor. Todos eles, conectados de alguma forma à relação da infância com o protótipo de mundo que encontra no seu lar.
Ensolarado (Ricardo Tagino, 2010), o primeiro curta da noite, versa sobre a trajetória de uma menina que mora no sertão castigado pelo sol, cujo desejo de fugir para um lugar diferente e a descoberta de uma forma de fazê-lo procuram ocultar o que está mais evidente na narrativa: a saudade que se seguirá após a partida da menina para outro lugar. O trabalho com não-atores traz um frescor e uma veracidade imensa ao curta, ao contrário do emprego das cores desbotadas e dos close-ups extremos, que oferecem, paradoxalmente, uma textura árida que enfatiza o discurso da obra.
O segundo curta-metragem – Avós (Michael Wahrmann, 2009), que já havia sido exibido na noite de abertura – trata das relações entre um neto e seus avós: um olhar carinhoso e compreensivo sobre aquelas pessoas que parecem tão confiantes e tão frágeis ao mesmo tempo. Uma direção forte sem ser invasiva e um roteiro que toca pela sutileza com que aborda um relacionamento distanciado no tempo, mas não na presença física. Enquanto que, na abertura, seu foco pudesse ser a relação de amor com o cinema e a possibilidade de olhar para si mesmo, quando o vemos neste programa, privilegia a observação das relações de afeto que existem naquela casa, ainda que veladas.
Da melancolia do curta anterior, parte-se para a descontração do registro de um dia de brincadeiras em Perto de Casa (Sérgio Borges, 2009) -, onde podemos observar a espontaneidade da criança, que vê naquele monte de areia a infinitude do universo e muito mais: um modo de lidar com as surpresas que encontramos e os desafios que propomos a nós mesmos, mesmo que seja somente brincar pelado. Um trabalho que seria facilmente encontrado em sites como Youtube, mas que ganha neste programa um status de arte do cotidiano, de liberdade criativa nos momentos prosaicos.
Retornando a um painel mais dramático das relações familiares, o público se emocionou com um curta sobre uma saudade de quem não se conhece, sobre uma tentativa de idealizar para si uma mãe, a partir de um punhado de cartas. Assim se pode definir o trabalho da criadora de Querida Mãe (Patrícia Cornils, 2009) (foto), um registro audiovisual da busca engendrada por ela pela história de sua mãe, Zélia Maria. Mesmo que, de início, caminhe um pouco confuso – pela construção pouco fluente entre leituras de cartas e depoimentos -, o espectador acompanha sua jornada até um momento-chave, quando a diretora chora durante a locução de uma das cartas e acontece uma empatia imediata: a descoberta de uma vida anterior a si mesmo e a possibilidade de compreender seu lugar no mundo tocam profundamente o público presente.
Finalizando a noite com uma animação que emprega a técnica de rotoscopia, o curta Balanços e Milkshakes (Erick Ricco e Fernando Mendes, 2009) oferece ao espectador uma história terna que exibe o desabrochar de um relacionamento entre duas crianças. O diretor consegue ir além do que as imagens lhe propõem e, se, em alguns momentos, a narração parece confusa e redundante, é por que ela deseja conduzir seu público pela construção daquela poética infantil da maneira mais clara possível.
Ainda que pareça ter sido pensado na idéia dos núcleos de parentesco, esta mostra parece unir todas as histórias destes curtas em uma única sensação: a de pertencimento a um universo comum, onde todos nós - crianças, avós, mães, pais, irmãos, amigos, parentes distantes etc – estamos juntos na construção de uma vida que estende além de nossa passagem pela Terra, conectando-se com toda a história da humanidade
Internacional 05 - Estados Alterados
Márcio M. Andrade
Quando se fala em alteração de estados, pode se pensar em estados físicos – sólido, líquido e gasoso -, o que também pode ser pensado em estados emocionais, quando pensamos estar mais firmes ou alucinados de acordo com o momento.
Uma sensação de estranhamento permeia o primeiro curta do programa - A history of mutual respect (Gabriel Arantes e Daniel Schmidt, 2010) conduz o espectador por uma história onde o desrespeito não se esconde através de atitudes polidas e falsas, mas emerge das relações de suserania e vassalagem que os personagens exercem. A ironia e o paradoxo constituem um ponto-chave do roteiro através de diálogos ao mesmo tempo filosóficos e preconceituosos, fortalecidos por meio de imagens inquietantes e belas – como a perseguição do homem branco nu à nativa desprotegida pela floresta na tentativa de miscigenar e perpetuar sua raça naquele lugar.
Propondo um olhar mais absurdo e cômico sobre as sensações, Floating Head (foto) (Ben Dickinson, 2010) flerta com os filmes fantásticos trash utilizando efeitos especiais toscos para trazer à tona diferentes relações que possuímos com o desconhecido: medo, rejeição, falta, anseio, amor, aceitação. Tudo isso demonstrado da maneira mais esdrúxula e divertida possível, ainda que de maneira rasa.
Indo na direção oposta ao trabalho anterior, ao criar uma mitologia muito simbólica e hermética para lidar com sentimentos como perda e morte, o curta If there be thorns (Michael Robinson, 2009) não consegue uma comunicação ampla com o espectador por centrar-se em um universo extremamente denso e intrincado. Uma obra para se ver uma vez para ser sentida, mas para se rever para ser compreendida.
Voltando ao ar debochado, a paródia dos filmes trash, o curta Health – We Are Water (Eric Wareheim, 2010) mescla linguagem de HQs e clichês do filme de horror – em slow motion, uma garota corre por uma floresta, sendo perseguida por um assassino –, mas propondo uma distorção que o eleva ao escracho total dos slash movies. Uma montanha russa de emoções - do medo ao riso – cujo único propósito é divertir.
Por sua vez, a narrativa linear de Jesusito de mi vida (Jesus Perez-Miranda, 2009) expõe a relação de uma criança com a religião: pouco antes de dormir, um menino sente vontade de ir ao banheiro, mas, por ter medo do escuro, reza a Jesus para que Ele tire sua vontade de urinar. Enredo, direção e interpretação coesos e sutis em uma obra mais esquecível do que tocante.
Caminhando na contramão dos trabalhos anteriores, com a técnica de animação impressionante, Dot (Sumo Science, 2010) lança seu espectador em êxtase para um mundo de aventuras que acontece num cesto de novelos, agulhas e retalhos, gerando um retrato alucinante e imaginativo das possibilidades infinitas da arte cinematográfica.
Propondo um olhar mais reflexivo e empregando belamente uma fotografia em preto e branco e elementos de teatro de formas animadas, El Paraiso de Lili (Melina Leon, 2009) tem como protagonista uma garota que começa a se revoltar com "sistema" que governa o Peru de 1988. Singelo e sincero, ainda que pareça um curta perdido, quando se pensa na temática do programa.
Finalizando a mostra internacional, o curta Fear Thy Not (Sophie Sherman, 2010) mostra o percurso de uma mão que guia seu corpo rumo ao desconhecido, cantando uma música como se fosse uma âncora de segurança em meio à escuridão. Um cinema que trata de sensações quase táteis, ainda que pouco desenvolvido.
A alteração dos estados emocionais proposta pelo programa parece ir além das temáticas das histórias que estão sendo contadas, mas permear a experiência cinematográfica do público daquela noite, que se percebia com uma variedade de sensações – riso, tristeza, medo, reflexão, êxtase etc – em poucos minutos.
Internacional 01 - Intervenções
Nathalia Pereira
É complicado imaginar um filme que não trate de intervenções. Em todos os programas do Janela Internacional de Cinema desse ano podemos encontrar curtas que a abrangem, entretanto, existe uma sessão dedicada exclusivamente ao tema. Dessa forma, a impressão que fica após a exibição dos filmes é que as obras expostas no programa são bastante heterogêneas e que, entre os blocos de filmes apresentados pelo Festival, até agora, são as que têm elo menos nítido entre si.
Dos sete curtas pertencentes ao Intervenções, o italiano Big Bang Big Boom (Blu, 2010), certamente foi o mais aclamado pelos espectadores presentes no Cinema da Fundação. A animação em stop motion revela o olhar do diretor sobre o impulso inicial de vida na Terra e as prováveis motivações de seu futuro desaparecimento. A construção dos argumentos de Blu é feita não somente por meio de dezenas de pinturas em paredes – como vinha sendo a tendência estética predominante nos vídeos do diretor -, mas também pelo uso de objetos comuns, como baldes e garrafas plásticas.
Já em História de cão (2010), o franco-armeno Serge Avédikian resume na narração de um fato real o que queria dizer sobre a tendência humana a decidir-se por soluções brutas e irracionais para problemas que só existem em sua cabeça. Com cores fortes e poucas palavras, além dos efeitos sonoros agonizantes, a animação mostra como milhares de cães habitantes das ruas de Constantinopla, sentenciados como ferozes, foram capturados e isolados, sem alimentação, numa ilha há cem anos. O curta é valioso pelo registro de uma história perdida no tempo e pelo leque de reflexões que proporciona. Assim como em Big Bang Big Boom, o espaço para a crítica à violência humana é o maior ponto de impacto.
O curta Shoum (Katarina Zdjelar, 2010) é o mais cativante do bloco, mesmo apoiando-se, basicamente, na imagem fixa de uma mão que escreve. Trata-se de um homem iletrado, com unhas sujas e mãos calejadas que tenta repassar para o papel a letra da canção Shout, ou como o protagonista sem rosto entende: 'Shoum'. O fruto das horas de trabalho dedicadas à redação de palavras abstratas depois é repassado a um discípulo, assim como numa tradição. Se o espectador for inclinado a interpretações, Shoum pode remeter ao repasse cego de informações que vão perdendo seu real sentido ao longo do tempo. No final desse telefone sem fio, o resultado é digno de risos.
O lituano Sincronização (2009) contrasta peso e leveza quando permite que construções remanescentes da União Soviética flutuem nos arredores de um parquinho infantil. Apesar do absurdo presente nessas situações, a rotina da cidade permanece intacta. Também em A progressão dos insurgentes (Sylvie Zijlmans e Hewald Jongenelis, 2009), o nonsense se faz a partir do cotidiano, num passeio entre pai e filho, aficionados por sobreposições de roupas e objetos. O curta surrealista foi pensado para o Projeto All Suits.
Cidade Turbinada 3D (foto) (Keiichi Matsuda, 2010) expõe, a partir do design típico do meio virtual, a presença já arraigada da tecnologia digital na rotina humana. A falta dos óculos de visualização em 3D ressalta a desordem agregada a esse excesso de informação.
O trajeto linear da câmera entre salas, quartos e cozinhas de moradores de um edifício na Índia revela diferentes momentos, segredos e realidades em O Feitiço (Umesh Vinayak Kulkarni, 2009). A visita da câmera, invisível aos moradores, quase não presencia diálogos. Aliás, a conversa escassa foi uma tendência marcante em todos os filmes do programa Intervenções. O entendimento nesse caso foi conquistado a partir do casamento entre efeitos visuais e sonoros muito bem sucedido.
Brasil - Salvar Arquivo Vol. 2
Ingrid Melo
As coisas findas ficarão
Cinema mudo, nascimentos, viagens, romances. A primeira sessão de curtas nacionais do III Janela Internacional de Cinema lançou um olhar sobre a memória registrada através de imagens. E, dentre os quatro filmes apresentados, o destaque ficou por conta do irônico Fantasmas, do diretor mineiro André Novais, que, ao contrário do que esperamos, propõe a captura de algo justamente para esquecê-lo.
O curta brinca com a estética de filmes de arte e leva o espectador a passar cerca de dez minutos olhando para determinada esquina em uma rua, sem que isso faça sentido. Em off, as vozes dos dois atores conversando sobre coisas triviais, como uma partida de futebol e um empréstimo de dinheiro. O filme acena que vai limitar-se à jocosidade, todavia, nos últimos minutos, a explicação para o enquadramento da câmera acrescenta ainda mais originalidade a ele e justifica sua escolha para a sessão. Assim, compreendemos que os fantasmas citados no título vão bem além dos personagens que a plateia não enxerga.
A inovação no trato da imagem, contudo, não se restringiu ao filme de Novais. O curta Aeroporto, do recifense Marcelo Pedroso, mostra como o que seria descartado pode contar uma história. No filme, o diretor utiliza fotografias de viagens de anônimos para refletir acerca da facilidade de documentação oriunda dos avanços tecnológicos e não se limita aos registros perfeitos. Em seu curta, há espaço também para as imagens sem foco ou com problemas de enquadramento. Vale ressaltar, entretanto, a semelhança com Pacific, produzido por Pedroso no ano passado. Apesar da escolha por fotografias em detrimento aos vídeos usados no longa, Aeroporto é outra boa execução de uma mesma ideia.
Outro filme que se aproxima dessa linha é o Supermemórias (foto), de Danilo Carvalho. O diretor cearense também se valeu de imagens amadoras para seu curta. Com o diferencial de que o material conseguido por ele não é tão acessível assim. Carvalho reuniu vídeos caseiros de famílias de Fortaleza gravados em Super-8 nas décadas de 70 e 80 e, com uma trilha sonora excelente, conquistou o espectador. O resultado é um filme redondo, de eixo narrativo claro – justificado pelo nascimento do diretor –, repleto de ternura. Prato cheio para os nostálgicos.
Nostalgia também fez parte de Janela Molhada, de Marcos Enrique Lopes. O curta, às avessas dos demais, não inova, porém resgata um cinema pernambucano muito rico e pouco abordado pela mídia. O filme fala sobre Ugo Falângola e J. Cambieri, imigrantes italianos pioneiros em cinema no Recife e sobre o processo de restauração e preservação de filmes mudos. Um belo trabalho de montagem e pesquisa, com ênfase para o depoimento de Adriana Falângola e suas lembranças.
Internacional 01 - Intervenções
Poliana Dantas
We are the robots (?)
Se fosse possível fazer uma trilha sonora que aproximasse e/ou unisse em algum ponto os curtas exibidos na Mostra Internacional 1 – não por acaso intitulado de Intervenções –, com certeza as músicas do grupo alemão Kraftwerk estariam no topo da lista. O diálogo entre uma realidade imanente e volátil e um almejado futuro high-tech, e sua influência nas interrelações entre humanos e máquinas, foram bem aplicados em doses lúcidas e diferentes em cada obra.
Um desejo tridimensional que se inicia no imaginário da infância, na inspiração provocada pelo universo sci-fi, em que parece ser mais fácil dar vida e nova perspectiva a arquiteturas estáticas e inanimadas. Essa é a sensação despertada pelo curta Synchronisation (foto) (Rimas Sakalauskas, 2009); sensação esta vinda de um lugar onde, curiosamente, possui um atraso tecnológico com relação a outros países ocidentais. E seguindo esta linha de equiparação, temos Chienne D’Histoire, que conta a história de um recém-empossado governo da cidade de Constantinopla que, querendo conquistar o perfil de sociedade do Ocidente, manda dizimar todos os cães viralatas que rondam as ruas.
Até aí seria mais um roteiro extremamente dramático, não fosse o olhar sagaz do diretor Serge Avédikian em levantar uma questão crucial: a que ponto aceitamos coibir e corromper nossos valores a fim de nos adequarmos ao que é moderno? Essa "supressão" da identidade, no entanto, contrapõe-se ao objetivo do curta Gaarud (Umesh Vinayak Kulkarni, 2009) de mostrar que por trás de turbantes e tradições religiosas, existem pessoas entregues às suas solidões existenciais e dispostas a modificarem suas identidades com novas regras, novas informações.
Mas para receber o que é novo, é preciso antes de tudo saber interpretar, seja a seu próprio modo ou a do outro. Essa espontaneidade adaptativa é tratada com muito humor em Shoum (2009), de Katarina Zdjelar; um filme sobre um homem que tenta transcrever a todo custo uma música do Tears for Fears. A partir daí, o público passeia pelas fronteiras entre o mundo tocável e o virtual como artifício para a fortificação das relações humanas, como se vê em Augumented City 3D, de Keiichi Matsuda, uma "tridivisão" da rotina dos relacionamentos, e em The Insurrectionists Progression (Sylvie Zylmans / Hewald Jongelelis, 2009).
E, como toda busca, toda mediação, proporciona sempre uma conseqüência, nada melhor pra fechar o Programa que o quase apocalíptico Big Bang Big Boom, do cineasta italiano Blu. O ritmo frenético imprimido pela exploração do stop-motion e o sinal de alerta ao final da película gera, de fato, um incômodo perturbante naqueles que pensam que modificar as morfologias naturais visando um futuro melhor é sempre a melhor solução.
Falar de intervenções é tão abrangente, mexe de forma considerável em diversos campos da ciência; contudo, todos eles convergem para um único viés: o da (des)evolução e maquinatização dos seres, mesmo que isso implique em paradoxos.
segunda-feira, 15 de novembro de 2010
Internacional 01 - Intervenções
Yuri Assis
É bem provável que os espectadores do programa Intervenções, primeiro bloco de curtas internacionais da Janela Internacional de Cinema, tenham deixado a sala do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco com mais perguntas que respostas. O absurdo, em alguns momentos, ocupou a tela, talvez para sublinhar nossa intransigência diante do estranhamento.
O curta que abriu o bloco, Synchronisation (2009), do lituano Rimas Sakalauskas, exibe prédios antigos da era soviética que ganham vida e se deslocam, sem se apoiar num enredo específico. Um esforço de compreensão, todavia, pode entrever nas cenas oníricas uma metáfora sobre o abandono. A trilha sonora complementa os ares surrealistas que contornam a atmosfera do filme.
A seguir, a animação Chienne D'Histoire (2010), do francês Serge Avédikian, aterrissa os olhares para uma realidade mais verossímil. Com o excesso de vira-latas nas ruas, as autoridades de Constantinopla iniciam uma captura aos animais, para em seguida deportá-los para uma ilha distante. Morto o bicho, morto o veneno? E a peçonha, vem de onde mesmo? Fica a dica para quem acha que os males sociais não têm nada com a sociedade em si.
As cenas em 3D de Augmented City 3D (2010) focam o domínio da fúria tecnológica sobre o cotidiano. O diretor inglês Keiichi Matsuda mostra um mundo dependente destes aparelhos para as ações e interações mais triviais. O inventado permeia o real, a ponto de não ser possível distingui-los. Coisas típicas de tempos de globalização.
Já o holandês Insurrectionists Progression (2009), co-dirigido por Sylvie Zijlmans e Hewald Jongenelis, traduz uma experiência que se aproxima da estética dos sonhos. Pai e filho atravessam a cidade repetindo padrões, numa coleção de ninharias que não revela o menor sentido. Permanece a impressão de que a herança também transmite lixo.
Shoum (2009), da sérvia Katarina Zdjelar, veio para quebrar o gelo no programa. A plateia ria dos esforços de um homem para interpretar uma música da banda Tears for Fears. No que acreditava ser inglês, a pessoa ia transcrevendo os versos à medida que ouvia a canção. No fundo, o curta-metragem reflete as dificuldades imemoriais relativas à comunicação humana.
Destaque para a película indiana Gaarud (2009), de Umesh Vinayak Kulkarni, que, ao modo de Aluísio Azevedo em seu livro O Cortiço, tece, num panorama, retrato da sociedade indiana. Os espectadores são levados por uma câmera a conhecer os cômodos de um edifício popular, onde vivem diferentes indivíduos. Sem pretensões de aprofundar a história de nenhum personagem, Umesh deu preferência a compor um quadro geral.
O notável Big Bang Big Boom (2010), do italiano Blu, encerra o Intervenções, percorrendo a história mundial desde a criação do universo. A animação, quiçá uma das melhores realizações em stop motion, parte de pinturas para contar como foi surgindo a vida no planeta.
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