Liana Cirne Lins
Visto desde a janela crítica
Uma maratona de dez dias de cinema entrando por todos os sentidos e transbordando pelos poros a que se chega ao fim num misto de exaustão e êxtase.
A experiência de escrever as críticas dos curtas nacionais e internacionais que participaram da mostra competitiva e integrar um júri especial foi rica em vários sentidos e incrivelmente envolvente, a despeito do Janela Crítica ficar um tanto marginalizado dentro da estrutura do próprio festival e de uma relativa invisibilidade dos textos publicados que, de forma até simbólica, não integram o site do J
anela e não são anunciados na página do evento no facebook.
O festival teve tantos pontos altos que os problemas técnicos dos primeiros dias, principalmente com o som do Cinema São Luiz, ficaram esquecidos à medida em que o festival avançava.
Em primeiro lugar, o festival acordou o centro do Recife, tingiu as paredes do Edifício Trianon com suas projeções e forçou os ratos a abrirem espaço para as pessoas em frente ao Cinema São Luiz, que ressurgiu como um amante antigo que reaparece para lembrar nunca ter sido esquecido.
Além disso, o festival promoveu várias catarses coletivas, iniciando pela sua abertura com Febre do Rato de Claudio Assis e passando por todos os Kubricks. Com a resolução dos problemas técnicos do som, as intensas sensações sonora e visual vivenciadas permitem dizer que ali todos assistiram O Iluminado pela primeira vez.
Quanto aos curtas, chamou atenção o fato de vários deles (Vó Maria, Oma, Adeus Mandima, Elegie à Rimbeau) orbitarem a esfera íntima de seus realizadores, levando o espectador para dentro das suas casas, das suas famílias, das suas intimidades. Isso pode ser bom, pois o universal se estabelece a partir do íntimo.
Mas também se mostra uma armadilha, quando reflete a incapacidade de ver o outro e sentir a partir dele ou mesmo quando expõe uma limitação sensorial e perceptiva do diretor.
Exercícios adivinhatórios são sempre muito arriscados, mas ao final do IV Janela Internacional de Cinema do Recife fica-se com a impressão de que esse festival vai entrar para a história da cidade e compor o imaginário coletivo artístico e intelectual que compôs seu público nesses dez dias. Não especialmente pela boa seleção dos filmes ou pela movimentação cultural no centro da cidade ou pela alta qualidade técnica de som e imagem que pode ser principalmente vivenciada na retrospectiva Kubrick. Mas porque, juntando todos esses elementos num só evento, promoveu uma experiência intelectual, simbólica e afetiva como há muito tempo não se tinha em Recife.
segunda-feira, 14 de novembro de 2011
sábado, 12 de novembro de 2011
EU RECEBERIA AS PIORES NOTÍCIAS DE SEUS LINDOS LÁBIOS
Beatriz Braga
Você tem medo da vida?
"Você só deve abrir quando estiver muito desesperado". Ela diz revelando o presente, uma caixinha preta e seu cadeado. "– E a chave?" Não tinha. Como previsto, o desespero chegou e a caixa quebrada serviu para acalmar (ou inquietar ainda mais?) o coração: "eu te amo" escrito em linha simples, quase esquecido e deixado para trás. A história pode até parecer clichê, se não fossem as personagens densas e complexas que compõem o epicentro da trama. Cauby, o artista, Ernani, o pastor, e Lavínia, uma mulher dividida entre a paixão ardente ou a aparente estabilidade da salvação religiosa. Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios, de Beto Brant e Renato Ciasca, foi exibido na quinta-feira (10-nov.) no Cinema São Luiz.
Lavínia (Camila Pitanga) de cabelos soltos, nua e pintada de tinta. Em um ritual amoroso com Cauby (Gustavo Machado), ela mostra sua face crua que serve perfeitamente à câmera do amante, as fotos mais bonitas do fotógrafo que guardam seu maior segredo e desejo. Mas Lavínia também é a mulher que veio das ruas, da prostituição e das drogas acolhida por Ernani (José Carlos Machado). Ele vê nela uma criança carente que o espectador dificilmente encontra. Em um ritual religioso, enquanto ela vomita, ele balança sua cabeça e pede a Deus que expulse a maldade de seu corpo. Lavínia também nunca deixou de ser a criança dolorida pelo abuso sexual. Em seu ritual com o vício, a bebida, aquela menina indecisa entre assumir seu corpo de mulher ou enfrentar a violência ao seu lado surge de repente. Lavínia não consegue decidir o que a faz sã. Erra muito por tentar acertar. Mas de muito procurar os extremos opostos de seus desejos, acaba caindo em devaneios. Todo mundo tem um pouco da Lavínia que prostitui sua identidade em troca de proteção e, também, da que se entrega de corpo e alma à vida, ao perigo.
Você tem medo da vida? Pergunta Vicktor, um quarto personagem de passagem pelo filme, mas nem por isso menos interessante. A interrogação alfineta o espectador que até agora só observava. Vicktor, que parece não temer a morte e vai ao seu encontro, mostra que difícil mesmo é permanecer vivo e encarar a realidade. Sua herança deixada para Cauby é categórica, uma espécie de jornal que trazia as fotos de Lavínia e a frase grande e pertinente “Santa é a carne que peca”. A pureza está no infame, no desequilíbrio. Santo é Cauby quando erotiza o ultimo rastro da igreja no corpo da mulher do pastor, é Ernani quando faz se entrega ao sexo carnal da protegida e, por fim, Lavínia quando bate à casa do fotógrafo e diz “eu voltei”.
Quando os caminhos se divergem, a força do sentimento parece ser maior. O amor é, no final, é a única fonte de lucidez. A morte de Ernani, a prisão de Cauby e tempo depois, o local de encontro é um Hospício. Ela é paciente, ele ainda apaixonado. Um sem o outro, estão perdidos. A identidade da mulher cheia de faces, idas e vindas é deixada para trás. A lembrança do que já foi está, agora, transformada em uma nova mulher. Não se vê resquício de Lavínia naquela que agora atende por Lúcia, seu, talvez, nome original. Por fim, ela simplesmente sorri, pela primeira vez no filme.
Você tem medo da vida?
"Você só deve abrir quando estiver muito desesperado". Ela diz revelando o presente, uma caixinha preta e seu cadeado. "– E a chave?" Não tinha. Como previsto, o desespero chegou e a caixa quebrada serviu para acalmar (ou inquietar ainda mais?) o coração: "eu te amo" escrito em linha simples, quase esquecido e deixado para trás. A história pode até parecer clichê, se não fossem as personagens densas e complexas que compõem o epicentro da trama. Cauby, o artista, Ernani, o pastor, e Lavínia, uma mulher dividida entre a paixão ardente ou a aparente estabilidade da salvação religiosa. Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios, de Beto Brant e Renato Ciasca, foi exibido na quinta-feira (10-nov.) no Cinema São Luiz.
Lavínia (Camila Pitanga) de cabelos soltos, nua e pintada de tinta. Em um ritual amoroso com Cauby (Gustavo Machado), ela mostra sua face crua que serve perfeitamente à câmera do amante, as fotos mais bonitas do fotógrafo que guardam seu maior segredo e desejo. Mas Lavínia também é a mulher que veio das ruas, da prostituição e das drogas acolhida por Ernani (José Carlos Machado). Ele vê nela uma criança carente que o espectador dificilmente encontra. Em um ritual religioso, enquanto ela vomita, ele balança sua cabeça e pede a Deus que expulse a maldade de seu corpo. Lavínia também nunca deixou de ser a criança dolorida pelo abuso sexual. Em seu ritual com o vício, a bebida, aquela menina indecisa entre assumir seu corpo de mulher ou enfrentar a violência ao seu lado surge de repente. Lavínia não consegue decidir o que a faz sã. Erra muito por tentar acertar. Mas de muito procurar os extremos opostos de seus desejos, acaba caindo em devaneios. Todo mundo tem um pouco da Lavínia que prostitui sua identidade em troca de proteção e, também, da que se entrega de corpo e alma à vida, ao perigo.
Você tem medo da vida? Pergunta Vicktor, um quarto personagem de passagem pelo filme, mas nem por isso menos interessante. A interrogação alfineta o espectador que até agora só observava. Vicktor, que parece não temer a morte e vai ao seu encontro, mostra que difícil mesmo é permanecer vivo e encarar a realidade. Sua herança deixada para Cauby é categórica, uma espécie de jornal que trazia as fotos de Lavínia e a frase grande e pertinente “Santa é a carne que peca”. A pureza está no infame, no desequilíbrio. Santo é Cauby quando erotiza o ultimo rastro da igreja no corpo da mulher do pastor, é Ernani quando faz se entrega ao sexo carnal da protegida e, por fim, Lavínia quando bate à casa do fotógrafo e diz “eu voltei”.
Quando os caminhos se divergem, a força do sentimento parece ser maior. O amor é, no final, é a única fonte de lucidez. A morte de Ernani, a prisão de Cauby e tempo depois, o local de encontro é um Hospício. Ela é paciente, ele ainda apaixonado. Um sem o outro, estão perdidos. A identidade da mulher cheia de faces, idas e vindas é deixada para trás. A lembrança do que já foi está, agora, transformada em uma nova mulher. Não se vê resquício de Lavínia naquela que agora atende por Lúcia, seu, talvez, nome original. Por fim, ela simplesmente sorri, pela primeira vez no filme.
INTERNACIONAL 2 – QUATRO MULHERES
Bárbara Buril
Quatro modos de libertar-se e deixar-se libertar
Um senhor doente, na cama, tem uma fantasia: ter um encontro sexual com uma prostituta travesti. Imobilizado, quem faz o convite? A sua esposa. É constrangedor, mas Aliya, a prostituta, aceita o desafio. Fourplay: San Francisco (Kyle Henry, 2011) conta a emocionante história de um episódio que tinha tudo para marcar a vida de um homem heterossexual, mas que acaba sendo inesquecível para a própria prostituta.
Tom diz “sim” com duas piscadelas do olho e “não” com uma. Só sente a face e os pés. Apesar das limitações físicas, o homem consegue, com o dedão do pé, dar a Aliya o orgasmo nunca alcançado. A situação, apesar de cômica, consegue ser traduzida de uma forma impecável: a música é romântica, o quarto está à meia-luz e Tom olha para a mulher com toda a serenidade do mundo. Uma virgindade, ali, está sendo rompida.
Justine, a personagem do curta-metragem Junior (Julia Ducournau, 2011), também guarda um segredo. Assim como outras meninas do seu colégio, sofre de uma maldição metamórfica: dores no estômago, vômitos e fissuras na pele é o preço da transformação das meninas em mulheres. Junior, como é chamada no colégio, agora assume a identidade Justine.
A vazão ao orgasmo e à exploração do gênero é dada. Em Girl (Fijona Jonuzi, 2011), há a libertação de regras sociais. Hanna, de 32 anos, a convite de um desconhecido em uma loja de conveniências, vai parar em uma festa de apartamento com cinco jovens de 20 anos. Inicialmente, ela sente-se incomodada com a diferença de idade e eles mostram-se surpresos. Depois de bebidas e cocaína, esquecem o problema e aproveitam a noite.
Já quem assombra o cotidiano de Daphnèe, uma jovem adolescente haitiana, é o espírito de Marassa. Em lugares inadequados, ele toma o corpo da menina. Diferentemente do espaço urbano dos três curtas do programa Quatro Mulheres, o universo de Sève (Louise Botkay, 2011) se dá no contexto mágico das religiões africanas do Haiti. Assim como Aliya, Junior e Hanna, Daphnèe também precisa se libertar. É só esperar finados acabar, época em que os espíritos bêbados e brincalhões descem mais facilmente.
Quatro modos de libertar-se e deixar-se libertar
Um senhor doente, na cama, tem uma fantasia: ter um encontro sexual com uma prostituta travesti. Imobilizado, quem faz o convite? A sua esposa. É constrangedor, mas Aliya, a prostituta, aceita o desafio. Fourplay: San Francisco (Kyle Henry, 2011) conta a emocionante história de um episódio que tinha tudo para marcar a vida de um homem heterossexual, mas que acaba sendo inesquecível para a própria prostituta.
Tom diz “sim” com duas piscadelas do olho e “não” com uma. Só sente a face e os pés. Apesar das limitações físicas, o homem consegue, com o dedão do pé, dar a Aliya o orgasmo nunca alcançado. A situação, apesar de cômica, consegue ser traduzida de uma forma impecável: a música é romântica, o quarto está à meia-luz e Tom olha para a mulher com toda a serenidade do mundo. Uma virgindade, ali, está sendo rompida.
Justine, a personagem do curta-metragem Junior (Julia Ducournau, 2011), também guarda um segredo. Assim como outras meninas do seu colégio, sofre de uma maldição metamórfica: dores no estômago, vômitos e fissuras na pele é o preço da transformação das meninas em mulheres. Junior, como é chamada no colégio, agora assume a identidade Justine.
A vazão ao orgasmo e à exploração do gênero é dada. Em Girl (Fijona Jonuzi, 2011), há a libertação de regras sociais. Hanna, de 32 anos, a convite de um desconhecido em uma loja de conveniências, vai parar em uma festa de apartamento com cinco jovens de 20 anos. Inicialmente, ela sente-se incomodada com a diferença de idade e eles mostram-se surpresos. Depois de bebidas e cocaína, esquecem o problema e aproveitam a noite.
Já quem assombra o cotidiano de Daphnèe, uma jovem adolescente haitiana, é o espírito de Marassa. Em lugares inadequados, ele toma o corpo da menina. Diferentemente do espaço urbano dos três curtas do programa Quatro Mulheres, o universo de Sève (Louise Botkay, 2011) se dá no contexto mágico das religiões africanas do Haiti. Assim como Aliya, Junior e Hanna, Daphnèe também precisa se libertar. É só esperar finados acabar, época em que os espíritos bêbados e brincalhões descem mais facilmente.
INTERNACIONAIS 3 – MELANCOLIA
Lorena Tabosa
Basta estar vivo
Tudo o que está vivo, morre. Esta talvez seja a maior das lições que jamais iremos aprender. Jamais porque por mais que haja o esforço, nunca se sabe, ao certo, como lidar com algo letal, implacável e pontual ao mesmo tempo. E não é necessário que se esteja diante da morte física, da morte de alguém. Pensamentos, desejos, sonhos e medos podem ser abatidos, dando vida à dor. No programa Internacionais 3, Melancolia, o espectador do Janela pôde se deparar com este delicado limiar existente entre o desespero, a culpa e a saudade.
Em Raio de Sol Bate no Setor de Congelados e Deixa Tudo Mole (Kommt Ein Sonnenstrahl in Die Tiefkuhlabteilung Und Weicht Alles Auf), de Lisa Weber, um casal leva uma rotina de calmaria, até um tanto apática. Não tomam café da manhã juntos e se prostram diante da televisão em poltronas separadas, num indício de indiferença. Mas uma cruz de madeira, fincada na beira de uma estrada, quebra a monotonia e dá lugar à dor em comum, a um abraço lado a lado. Numa representação simples e fiel, o filme nos transporta para os confins de uma grande perda e suas implicações em quem fica. É a sensação de um vazio impenetrável e, quase sempre, mas não neste caso, particular.
Dizem que o homem sofre de véspera. Em A Viagem (Wycieczka), de Bartosz Kruhlik, devaneios de um avô sobre o passar do tempo, sobre aquilo que já se foi e sobre o que não mais virá. Ele ensina sua neta a pilotar uma scooter e a apreciar a natureza, embora saiba que, provavelmente, não a verá pôr em prática outras tantas lições que ainda tinha para ela. O tempo passa despercebido até o momento em que pesa demais. Na inocência da menina, nota-se que as toneladas são sentidas apenas por quem já está aí há algumas décadas e que, infelizmente, ela só saberá quando do envelhecimento inevitável causado pela dor da perda. E é assim com todos nós.
Também comum à humanidade é a preocupação lançada em Adeus, Mandima (Kwa Heri Mandima), de Robert-Jan Lacombe: a despedida. No filme, fotografias de uma infância no Zaire e a partida da família, de origem européia, para nunca mais voltar. O lamento de Lacombe é a conhecida culpa pelo adeus nunca dito, embora, à época, ele não soubesse que jamais veria aquelas pessoas outra vez. E sem nunca ter pertencido a nenhum lugar, ele descartou e foi descartado em meio a disparidades culturais. Numa fresta para a questão das lembranças versus identidade, o espectador tem a oportunidade de projetar-se novamente e indagar: somos frutos daquilo que vivemos ou o que vivenciamos é resultado daquilo que somos?
Fotografias retornam na narrativa de A Esposa do Fotógrafo (Die Frau Des Fotografen), de Karsten Krause e Philip Widmann. Fazendo uso de fotografias diante da efemeridade do tempo e das falhas da memória, Gerti teve sua existência imortalizada pelo olhar do marido, em nus cobertos apenas de amor e de um quê de idolatria. O filme propõe uma reflexão sobre o que nos resta no fim de tudo. Serão fotografias? Será amor? Na verdade, um é bobina do outro e se um deixa de existir, o outro esmorece.
Mas quando são os desejos que morrem, ou são forçados a morrer, nem a dor e nem o choro são, necessariamente, menores. Em Dois, Por Favor (Dos, Por Favor), de Fabian Vasquez Euresti, um reencontro mal sucedido com uma namorada permite que José se veja em desejo por um amigo. O choro de medo daquilo que não conhecia sobre si mesmo e a tentativa de calar a vontade se contorcem numa luta entre o homem passional e o racional. Mas para eliminar um desejo, outro - o de matá-lo – precisa nascer. Assim, a morte é, na verdade, vida, mesmo que dolorosa demais.
Basta estar vivo
Tudo o que está vivo, morre. Esta talvez seja a maior das lições que jamais iremos aprender. Jamais porque por mais que haja o esforço, nunca se sabe, ao certo, como lidar com algo letal, implacável e pontual ao mesmo tempo. E não é necessário que se esteja diante da morte física, da morte de alguém. Pensamentos, desejos, sonhos e medos podem ser abatidos, dando vida à dor. No programa Internacionais 3, Melancolia, o espectador do Janela pôde se deparar com este delicado limiar existente entre o desespero, a culpa e a saudade.
Em Raio de Sol Bate no Setor de Congelados e Deixa Tudo Mole (Kommt Ein Sonnenstrahl in Die Tiefkuhlabteilung Und Weicht Alles Auf), de Lisa Weber, um casal leva uma rotina de calmaria, até um tanto apática. Não tomam café da manhã juntos e se prostram diante da televisão em poltronas separadas, num indício de indiferença. Mas uma cruz de madeira, fincada na beira de uma estrada, quebra a monotonia e dá lugar à dor em comum, a um abraço lado a lado. Numa representação simples e fiel, o filme nos transporta para os confins de uma grande perda e suas implicações em quem fica. É a sensação de um vazio impenetrável e, quase sempre, mas não neste caso, particular.
Dizem que o homem sofre de véspera. Em A Viagem (Wycieczka), de Bartosz Kruhlik, devaneios de um avô sobre o passar do tempo, sobre aquilo que já se foi e sobre o que não mais virá. Ele ensina sua neta a pilotar uma scooter e a apreciar a natureza, embora saiba que, provavelmente, não a verá pôr em prática outras tantas lições que ainda tinha para ela. O tempo passa despercebido até o momento em que pesa demais. Na inocência da menina, nota-se que as toneladas são sentidas apenas por quem já está aí há algumas décadas e que, infelizmente, ela só saberá quando do envelhecimento inevitável causado pela dor da perda. E é assim com todos nós.
Também comum à humanidade é a preocupação lançada em Adeus, Mandima (Kwa Heri Mandima), de Robert-Jan Lacombe: a despedida. No filme, fotografias de uma infância no Zaire e a partida da família, de origem européia, para nunca mais voltar. O lamento de Lacombe é a conhecida culpa pelo adeus nunca dito, embora, à época, ele não soubesse que jamais veria aquelas pessoas outra vez. E sem nunca ter pertencido a nenhum lugar, ele descartou e foi descartado em meio a disparidades culturais. Numa fresta para a questão das lembranças versus identidade, o espectador tem a oportunidade de projetar-se novamente e indagar: somos frutos daquilo que vivemos ou o que vivenciamos é resultado daquilo que somos?
Fotografias retornam na narrativa de A Esposa do Fotógrafo (Die Frau Des Fotografen), de Karsten Krause e Philip Widmann. Fazendo uso de fotografias diante da efemeridade do tempo e das falhas da memória, Gerti teve sua existência imortalizada pelo olhar do marido, em nus cobertos apenas de amor e de um quê de idolatria. O filme propõe uma reflexão sobre o que nos resta no fim de tudo. Serão fotografias? Será amor? Na verdade, um é bobina do outro e se um deixa de existir, o outro esmorece.
Mas quando são os desejos que morrem, ou são forçados a morrer, nem a dor e nem o choro são, necessariamente, menores. Em Dois, Por Favor (Dos, Por Favor), de Fabian Vasquez Euresti, um reencontro mal sucedido com uma namorada permite que José se veja em desejo por um amigo. O choro de medo daquilo que não conhecia sobre si mesmo e a tentativa de calar a vontade se contorcem numa luta entre o homem passional e o racional. Mas para eliminar um desejo, outro - o de matá-lo – precisa nascer. Assim, a morte é, na verdade, vida, mesmo que dolorosa demais.
sexta-feira, 11 de novembro de 2011
EU RECEBERIA AS PIORES NOTÍCIAS DOS SEUS LINDOS LÁBIOS
Liana Cirne Lins
Nem tudo, nem nada
Uma boa história de amor é uma história de perdição e de redenção.
Ao mesmo tempo, porque amor é perdição e redenção, é doença e cura, delírio e lucidez, entrega e recato, pulsão de morte e de vida.
Porque o que queremos é morrer nos braços do outro e renascer.
O problema é quando esse tudo parte-se ao meio, como o visconde de Calvino, e se apresenta em duas metades tão apartadas quanto um pastor líder comunitário e um fotógrafo hedonista.
Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios (Beto Brant; Renato Ciasca, 2011) é um história de amor vivida por Lavínia, interpretada por Camila Pitanga, ex-prostituta e ex-drogada, libertada pelo pastor com quem viria a casar, Ernani (Zé Carlos Machado).
Sua vulgaridade e sua fragilidade remontam a cena de Betty Blue (Jean-Jacques Beineix, 1986) em que ela, levantando o vestido e usando nada por baixo, exibe e projeta seu sexo em sinal de desacato e transgressão.
À beira da autodestruição, o resgate religioso da mulher se dá numa cena de exorcismo realizada livre de qualquer preconceito, numa oração recitada com muita convicção por Zé Carlo Machado, que confere a Ernani a duplicidade da pureza e do interesse na bela mulher.
Em missão religiosa, mudam-se para o Pará e casam-se. A vida de Lavínia se transforma e ela encontra paz na tranquilidade da felicidade doméstica e nos hinos religiosos que entoa nos cultos. Lavínia curou-se.
O problema é que tanta cura e saúde adoecem.
Ninguém consegue interpretar um só papel.
Lavínia encontra em Cauby (Gustavo Machado) a cura para sua sanidade.
Com ele, reencontra sua outra metade: ela mesma, sua própria riqueza delirante, frenética e alucinada.
Desde o início, a cumplicidade dos dois é a destruição: penetram-se com cores e tintas e pinceis e marcam um no outro símbolos de morte e de guerra. Seu destino está anunciado.
E se Lavínia não pode resistir à insensatez que Cauby representa, também não quer abandonar a sanidade do leito de Ernani. A consciência da impossibilidade de completude, a incapacidade de decidir, a dor de novamente ser metade de si mesma levam-na à loucura, cujo realismo aumenta na mesma proporção em que Camila Pitanga despoja-se da sua beleza.
Seria um filme feminino, não fosse o ponto de vista prevalente de Cauby. E nesse sentido ele é tão masculino que à nudez desinibida de Camila Pitanga contrapõem-se calculados enquadramentos que vedam ao espectador o recíproco nu masculino.
O filme perde-se em alguns momentos com cenas excessivas, como a cena de abertura em que uma mulher posa para câmera, a de um ritual xamã, e um micro-documentário sobre as consequências da devastação da floresta para as comunidades locais, que nada incorporam à narrativa.
No último caso – a denúncia sobre o corte ilegal da madeira – sua incorporação na ficção (como ficção) funciona bem. Uma sequência de imagens aéreas da floresta que vai sendo progressivamente desmatada entrelaça os dramas políticos da comunidade com os dramas pessoais dos personagens que vão, assim como a floresta, sendo devastados.
Beto Brant e Renato Ciasca optam por um final feliz, tão em desuso.
Inflam novamente a vida em Lavínia, com um beijo, como num conto de fadas do século XXI.
Lavínia não pode ter tudo, mas não é condenada a ficar esvaziada.
Nem tudo, nem nada
Uma boa história de amor é uma história de perdição e de redenção.
Ao mesmo tempo, porque amor é perdição e redenção, é doença e cura, delírio e lucidez, entrega e recato, pulsão de morte e de vida.
Porque o que queremos é morrer nos braços do outro e renascer.
O problema é quando esse tudo parte-se ao meio, como o visconde de Calvino, e se apresenta em duas metades tão apartadas quanto um pastor líder comunitário e um fotógrafo hedonista.
Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios (Beto Brant; Renato Ciasca, 2011) é um história de amor vivida por Lavínia, interpretada por Camila Pitanga, ex-prostituta e ex-drogada, libertada pelo pastor com quem viria a casar, Ernani (Zé Carlos Machado).
Sua vulgaridade e sua fragilidade remontam a cena de Betty Blue (Jean-Jacques Beineix, 1986) em que ela, levantando o vestido e usando nada por baixo, exibe e projeta seu sexo em sinal de desacato e transgressão.
À beira da autodestruição, o resgate religioso da mulher se dá numa cena de exorcismo realizada livre de qualquer preconceito, numa oração recitada com muita convicção por Zé Carlo Machado, que confere a Ernani a duplicidade da pureza e do interesse na bela mulher.
Em missão religiosa, mudam-se para o Pará e casam-se. A vida de Lavínia se transforma e ela encontra paz na tranquilidade da felicidade doméstica e nos hinos religiosos que entoa nos cultos. Lavínia curou-se.
O problema é que tanta cura e saúde adoecem.
Ninguém consegue interpretar um só papel.
Lavínia encontra em Cauby (Gustavo Machado) a cura para sua sanidade.
Com ele, reencontra sua outra metade: ela mesma, sua própria riqueza delirante, frenética e alucinada.
Desde o início, a cumplicidade dos dois é a destruição: penetram-se com cores e tintas e pinceis e marcam um no outro símbolos de morte e de guerra. Seu destino está anunciado.
E se Lavínia não pode resistir à insensatez que Cauby representa, também não quer abandonar a sanidade do leito de Ernani. A consciência da impossibilidade de completude, a incapacidade de decidir, a dor de novamente ser metade de si mesma levam-na à loucura, cujo realismo aumenta na mesma proporção em que Camila Pitanga despoja-se da sua beleza.
Seria um filme feminino, não fosse o ponto de vista prevalente de Cauby. E nesse sentido ele é tão masculino que à nudez desinibida de Camila Pitanga contrapõem-se calculados enquadramentos que vedam ao espectador o recíproco nu masculino.
O filme perde-se em alguns momentos com cenas excessivas, como a cena de abertura em que uma mulher posa para câmera, a de um ritual xamã, e um micro-documentário sobre as consequências da devastação da floresta para as comunidades locais, que nada incorporam à narrativa.
No último caso – a denúncia sobre o corte ilegal da madeira – sua incorporação na ficção (como ficção) funciona bem. Uma sequência de imagens aéreas da floresta que vai sendo progressivamente desmatada entrelaça os dramas políticos da comunidade com os dramas pessoais dos personagens que vão, assim como a floresta, sendo devastados.
Beto Brant e Renato Ciasca optam por um final feliz, tão em desuso.
Inflam novamente a vida em Lavínia, com um beijo, como num conto de fadas do século XXI.
Lavínia não pode ter tudo, mas não é condenada a ficar esvaziada.
quinta-feira, 10 de novembro de 2011
BRASIL 5 - EU SINTO FALTA
Liana Cirne Lins
Esse é um programa que anuncia uma tonalidade triste. Mas sentir falta pode ser um aquecer o coração, um sopro cálido e sereno.
No caso de Elégie à Rimbaud (2011, Leo Pyrata), temos um divertido curta feito a partir de imagens de arquivo de um cachorro, Rimbaud, brincando com seu dono e diretor do filme. Os latidos do cão são acompanhados de legendas em francês dos versos do poeta Rimbaud supostamente recitados pelo cachorro, o que inevitavelmente arranca boas risadas da platéia. O mais engraçado, entretanto, é a narração também em francês que descreve as desventuras amorosas e sexuais de Rimbaud, desfiando uma longa lista de cadelas por quem se apaixonou e disputou amores pelas ruas. A elegia de Leo Pyrata é um filme terno, leve, de um humor inteligente e acessível.
De outro lado, assumidamente nostálgico fica o Quando Morremos à Noite(Eduardo Morotó, 2011). Inspirado no conto A Mais Linda Mulher da Cidade, de Bucowski, o filme não apenas em preto e branco, mas sombrio, tem como protagonistas um homem de meia idade e uma jovem que se conhecem em um bar. No filme, porém, o elemento destrutivo não está na mulher (como no conto), que se mostra sempre vívida, mas no homem, que está doente. A ligação que se vai construindo entre os dois, fundada numa intimidade despretensiosa, é rompida pela decisão do homem de partir, estabelecendo uma primeira falta, transitória. A inversão das personagens e do impulso autodestrutivo poderia falsear o final e torná-lo inconsistente. Não é o que ocorre. O final surpreende. O sentimento da falta é mais agudo quando é inesperado.
Pra Eu Dormir Tranquilo (Juliana Rojas, 2011) conta a história de um menino de oito anos que está sofrendo muitas perdas ao mesmo tempo: a perda de atenção da mãe na iminência de ter outro filho, a perda da infância, pois está crescendo e, especialmente, a perda da babá, que morreu recentemente. A forma da diretora lidar com essa falta foi a mistura de gêneros com que uma história sobre afeto é contada através de elementos fantásticos (a babá ressurge no armário do menino), de terror (a babá assume forma de vampira, zumbi...). Ainda assim, a babá não causa medo, e sim a mãe, sofrendo de uma depressão pós-parto e tensa com problemas de trabalho de que não pode se afastar.
Vó Maria (Tomás Von der Osten, 2011) é uma tentativa de resgatar a memória da tataravó do diretor. Trata-se de uma tentativa não porque o diretor falha, mas justamente porque é bem-sucedido em seu projeto. O filme é uma sequência de imagens de uma única foto da personagem título que vão de um close extremo até um distanciamento que desfoca a imagem na tela, enquanto ouvem-se os depoimentos da neta, bisneta e tataraneta, que também vão se distanciando progressivamente da personagem até à afirmação “eu não sei nada sobre ela”. Esse não é um filme sobre a falta. Ao contrário, é um filme sobre o quanto nossa presença vai desaparecendo sem deixar faltas e sobre o quão finitos somos.
É interessante pontuar Vó Maria com Oma (Michael Wahrmann, 2011), filme que compôs o programa Puxando e Soltando. Se no primeiro temos um filme que busca em vão aproximar-se do seu passado, no segundo temos o registro do distanciamento entre gerações. Oma é um filme desrespeitoso em vários aspectos: na ridicularização da senilidade da personagem, nos planos invasivos que acentuam ou expõem uma decrepitude na velhice, nas situações de estranhamento da comunicação entre aquelas gerações acentuado pela insistência da avó em falar sua língua materna, alemão, que o neto não compreende e pela insistência do neto em não compreendê-la. O filme é um retrato da dificuldade em lidar com o outro que nos é diferente.
Estranhamento e esquecimento também são temas de A Felicidade dos Peixes (Arthur Lins, 2011). O cotidiano de um homem solitário que recebe a notícia da visita da filha distante há 20 anos, visita que acaba sendo frustrada, é o mote do estranhamento do protagonista com seu entorno e da uma falta imprecisa em sua vida. O ritmo lento do filme, os planos de destaque dados à televisão, as refeições delivery são coerentes com a proposta narrativa. O filme, porém, é significativamente prejudicado pela atuação de Humberto Lopes no papel do protagonista, chegando a levantar no espectador a dúvida sobre se houve a opção por utilizar um não-ator e distanciado o espectador do personagem, quebrando o tom intimista do filme.
Esse é um programa que anuncia uma tonalidade triste. Mas sentir falta pode ser um aquecer o coração, um sopro cálido e sereno.
No caso de Elégie à Rimbaud (2011, Leo Pyrata), temos um divertido curta feito a partir de imagens de arquivo de um cachorro, Rimbaud, brincando com seu dono e diretor do filme. Os latidos do cão são acompanhados de legendas em francês dos versos do poeta Rimbaud supostamente recitados pelo cachorro, o que inevitavelmente arranca boas risadas da platéia. O mais engraçado, entretanto, é a narração também em francês que descreve as desventuras amorosas e sexuais de Rimbaud, desfiando uma longa lista de cadelas por quem se apaixonou e disputou amores pelas ruas. A elegia de Leo Pyrata é um filme terno, leve, de um humor inteligente e acessível.
De outro lado, assumidamente nostálgico fica o Quando Morremos à Noite(Eduardo Morotó, 2011). Inspirado no conto A Mais Linda Mulher da Cidade, de Bucowski, o filme não apenas em preto e branco, mas sombrio, tem como protagonistas um homem de meia idade e uma jovem que se conhecem em um bar. No filme, porém, o elemento destrutivo não está na mulher (como no conto), que se mostra sempre vívida, mas no homem, que está doente. A ligação que se vai construindo entre os dois, fundada numa intimidade despretensiosa, é rompida pela decisão do homem de partir, estabelecendo uma primeira falta, transitória. A inversão das personagens e do impulso autodestrutivo poderia falsear o final e torná-lo inconsistente. Não é o que ocorre. O final surpreende. O sentimento da falta é mais agudo quando é inesperado.
Pra Eu Dormir Tranquilo (Juliana Rojas, 2011) conta a história de um menino de oito anos que está sofrendo muitas perdas ao mesmo tempo: a perda de atenção da mãe na iminência de ter outro filho, a perda da infância, pois está crescendo e, especialmente, a perda da babá, que morreu recentemente. A forma da diretora lidar com essa falta foi a mistura de gêneros com que uma história sobre afeto é contada através de elementos fantásticos (a babá ressurge no armário do menino), de terror (a babá assume forma de vampira, zumbi...). Ainda assim, a babá não causa medo, e sim a mãe, sofrendo de uma depressão pós-parto e tensa com problemas de trabalho de que não pode se afastar.
Vó Maria (Tomás Von der Osten, 2011) é uma tentativa de resgatar a memória da tataravó do diretor. Trata-se de uma tentativa não porque o diretor falha, mas justamente porque é bem-sucedido em seu projeto. O filme é uma sequência de imagens de uma única foto da personagem título que vão de um close extremo até um distanciamento que desfoca a imagem na tela, enquanto ouvem-se os depoimentos da neta, bisneta e tataraneta, que também vão se distanciando progressivamente da personagem até à afirmação “eu não sei nada sobre ela”. Esse não é um filme sobre a falta. Ao contrário, é um filme sobre o quanto nossa presença vai desaparecendo sem deixar faltas e sobre o quão finitos somos.
É interessante pontuar Vó Maria com Oma (Michael Wahrmann, 2011), filme que compôs o programa Puxando e Soltando. Se no primeiro temos um filme que busca em vão aproximar-se do seu passado, no segundo temos o registro do distanciamento entre gerações. Oma é um filme desrespeitoso em vários aspectos: na ridicularização da senilidade da personagem, nos planos invasivos que acentuam ou expõem uma decrepitude na velhice, nas situações de estranhamento da comunicação entre aquelas gerações acentuado pela insistência da avó em falar sua língua materna, alemão, que o neto não compreende e pela insistência do neto em não compreendê-la. O filme é um retrato da dificuldade em lidar com o outro que nos é diferente.
Estranhamento e esquecimento também são temas de A Felicidade dos Peixes (Arthur Lins, 2011). O cotidiano de um homem solitário que recebe a notícia da visita da filha distante há 20 anos, visita que acaba sendo frustrada, é o mote do estranhamento do protagonista com seu entorno e da uma falta imprecisa em sua vida. O ritmo lento do filme, os planos de destaque dados à televisão, as refeições delivery são coerentes com a proposta narrativa. O filme, porém, é significativamente prejudicado pela atuação de Humberto Lopes no papel do protagonista, chegando a levantar no espectador a dúvida sobre se houve a opção por utilizar um não-ator e distanciado o espectador do personagem, quebrando o tom intimista do filme.
INTERNACIONAL 2 – QUATRO MULHERES
José Juva
Quatro leituras do feminino e outras milhões embutidas
Focando a vida de algumas mulheres podemos ter as metáforas para compreendermos o universo de milhares, milhões de outras mulheres. E é esta a força das histórias das protagonistas do programa INTERNACIONAL 2 – QUATRO MULHERES, da IV Janela Internacional de Cinema. Uma jovem adolescente em sua jornada de iniciação e encontro com os espíritos do vodu haitiano, outra garota às voltas com os estranhamentos e as transformações provocadas pelo turbilhão de hormônios da adolescência, uma mulher adulta deslocada numa festa com cinco garotos em seus vinte e bem poucos anos e, finalmente, uma mulher criada na força de se travestir, atendendo os desejos sexuais de um sujeito moribundo.
Ousado, simultaneamente perturbador e delicado. Este é Fourplay: San Francisco, de Kyle Henry. Somos lançados num recorte do trabalho de uma drag, atendendo sexualmente no ambiente doméstico um sujeito em estado vegetativo, auxiliado por máquinas – ele se comunica pelo piscar de olhos. Depois de conversar com a esposa do sujeito, a drag vai para o quarto, onde o homem vive, sobre a cama. Sodomia, felação, podolatria – cabe tudo na entrega sincera da drag para animar e confortar o sujeito, que fica sempre com um ar de riso no rosto. No sexo distante do cotidiano e da ortodoxia, o homem reencontra as possibilidades para assegurar que permanece jorrando vida. “Você é uma máquina de sexo, baby. Está vivo.”, diz a drag.
Calcado numa estética experimental, num registro documental sutil, Sève, de Louise Botkay, acompanha o despertar do relacionamento de uma jovem haitiana com o mundo mítico e espiritual. Banho de ervas, danças, incensos. A garota recebe em sonhos o espírito de Marassa – este espírito representa o andrógino primordial, sendo apresentado também nas figuras do casal de gêmeos Mawu e Lissa. Temas como a fertilidade, a doçura, a bravura e a força giram diante dos olhos do espectador, amparados na vivência de iniciação da jovem. Frágil e pouco eficaz, Girl, de Fijona Jonuzi, conta a história de uma mulher adulta deslocada numa festa com cinco garotos por volta dos vinte anos. O filme amortece o espectador, também deslocado neste sobrevôo superficial sobre os silêncios constrangedores que envolvem as gerações.
Junior, curta realizado por Julia Ducournau é um experimento maduro. Atrai o espectador com uma narrativa permeada de assombros, lirismo, desconforto – como numa cena em que a garota revira profundamente a pele das costas. A jovem protagonista é insegura em relação ao corpo e às transformações típicas da idade – algo similar à estrutura da fábula do patinho feio. Embora o tema seja demasiadamente conhecido, o curta constrói uma assinatura própria ao traçar no corpo da jovem e no ambiente que a cerca, se utilizando de fortes materializações visuais das metáforas, as mudanças e transtornos por que passa. A garota fica bonita, quase irreconhecível, mas tem de aprender a lidar com gosmas que saem de seu corpo e encharcam o quarto. Para o espectador e para a personagem, a certeza de que é preciso voltar-se sobre si e encarar as próprias inseguranças para encontrar a sabedoria de uma vida autêntica.
Quatro leituras do feminino e outras milhões embutidas
Focando a vida de algumas mulheres podemos ter as metáforas para compreendermos o universo de milhares, milhões de outras mulheres. E é esta a força das histórias das protagonistas do programa INTERNACIONAL 2 – QUATRO MULHERES, da IV Janela Internacional de Cinema. Uma jovem adolescente em sua jornada de iniciação e encontro com os espíritos do vodu haitiano, outra garota às voltas com os estranhamentos e as transformações provocadas pelo turbilhão de hormônios da adolescência, uma mulher adulta deslocada numa festa com cinco garotos em seus vinte e bem poucos anos e, finalmente, uma mulher criada na força de se travestir, atendendo os desejos sexuais de um sujeito moribundo.
Ousado, simultaneamente perturbador e delicado. Este é Fourplay: San Francisco, de Kyle Henry. Somos lançados num recorte do trabalho de uma drag, atendendo sexualmente no ambiente doméstico um sujeito em estado vegetativo, auxiliado por máquinas – ele se comunica pelo piscar de olhos. Depois de conversar com a esposa do sujeito, a drag vai para o quarto, onde o homem vive, sobre a cama. Sodomia, felação, podolatria – cabe tudo na entrega sincera da drag para animar e confortar o sujeito, que fica sempre com um ar de riso no rosto. No sexo distante do cotidiano e da ortodoxia, o homem reencontra as possibilidades para assegurar que permanece jorrando vida. “Você é uma máquina de sexo, baby. Está vivo.”, diz a drag.
Calcado numa estética experimental, num registro documental sutil, Sève, de Louise Botkay, acompanha o despertar do relacionamento de uma jovem haitiana com o mundo mítico e espiritual. Banho de ervas, danças, incensos. A garota recebe em sonhos o espírito de Marassa – este espírito representa o andrógino primordial, sendo apresentado também nas figuras do casal de gêmeos Mawu e Lissa. Temas como a fertilidade, a doçura, a bravura e a força giram diante dos olhos do espectador, amparados na vivência de iniciação da jovem. Frágil e pouco eficaz, Girl, de Fijona Jonuzi, conta a história de uma mulher adulta deslocada numa festa com cinco garotos por volta dos vinte anos. O filme amortece o espectador, também deslocado neste sobrevôo superficial sobre os silêncios constrangedores que envolvem as gerações.
Junior, curta realizado por Julia Ducournau é um experimento maduro. Atrai o espectador com uma narrativa permeada de assombros, lirismo, desconforto – como numa cena em que a garota revira profundamente a pele das costas. A jovem protagonista é insegura em relação ao corpo e às transformações típicas da idade – algo similar à estrutura da fábula do patinho feio. Embora o tema seja demasiadamente conhecido, o curta constrói uma assinatura própria ao traçar no corpo da jovem e no ambiente que a cerca, se utilizando de fortes materializações visuais das metáforas, as mudanças e transtornos por que passa. A garota fica bonita, quase irreconhecível, mas tem de aprender a lidar com gosmas que saem de seu corpo e encharcam o quarto. Para o espectador e para a personagem, a certeza de que é preciso voltar-se sobre si e encarar as próprias inseguranças para encontrar a sabedoria de uma vida autêntica.
Assinar:
Postagens (Atom)